sexta-feira, 3 de junho de 2011

Acessibilidades: A nossa triste realidade...


Vivemos num mundo pouco amigo das pessoas com mobilidade reduzida e não haverá país que se possa orgulhar de não as discriminar. Mas há países muito menos amigos do que outros. Quando passamos a fronteira do nosso país e visitamos outros países europeus, é fácil darmos conta de que essas pessoas estão muito mais presentes no espaço público urbano e, por conseguinte, mais integradas na vida urbana – ou, se se preferir, menos excluídas, porque este é um dos principais fenómenos de exclusão social do nosso tempo.

São muitos os fatores que explicam essa grande diferença e não é objetivo deste artigo enumerá-los todos. O acesso aos transportes públicos, a existência de passeios suficientemente largos e desimpedidos - e sem carros estacionados em cima -, o nivelamento das passadeiras em relação aos passeios (ou vice-versa) e a não ocupação abusiva de lugares de estacionamento reservados a deficientes são apenas alguns deles. As imagens dos dois mosaicos seguintes mostram como a largura útil dos passeios e o impecável nivelamento entre passeios e passagens de peões permitem a circulação, sem dificuldades, de pessoas com mobilidade reduzida. Foram todas tiradas na mesma cidade do sul de França, na qual houve uma clara preocupação de eliminar barreiras físicas ao direito de circulação, com coerência (evitando-se situações comuns em Portugal como, por exemplo, a existência de um passeio rebaixado ao nível da passadeira e, 10 metros depois, o passeio obstruído ou a impossibilidade de atravessar no cruzamento seguinte…).


Enquanto em Portugal as pessoas com mobilidade reduzida ainda continuam a ver desrespeitado o elementar direito de poderem circular na rua (mesmo num arruamento obscenamente largo como a lisboeta Avenida 24 de Julho), há poucos meses, em França, a mãe de uma criança deficiente de 10 anos pôs em tribunal a autarquia parisiense, depois de ter sido recusado à filha o acesso ao terceiro e último andar da Torre Eiffel. O objetivo da ação judicial é obrigar a autarquia [mais rigorosamente, a empresa que explora o monumento, detida maioritariamente pela autarquia] a realizar as obras necessárias para garantir o direito de acesso às pessoas com mobilidade reduzida, consagrado na lei.
[O acesso ao topo da torre é, na realidade, possível, já que existe elevador do segundo para o terceiro andar. Mas o acesso é vedado aos deficientes em cadeiras de rodas, segundo a autarquia, por razões de segurança: do segundo para o terceiro andar só se pode aceder de elevador: existem escadas, mas são de emergência. Em caso de necessidade de evacuação imediata do último piso (devido a um incêndio, por exemplo) ou de simples avaria do elevador, não seria possível assegurar a descida de cadeiras de rodas ao segundo andar pelas escadas de emergência. As obras necessárias para permitir o livre acesso de pessoas com mobilidade reduzida ao terceiro andar custam, segundo a autarquia, cerca de dois milhões de euros.]
O tribunal ia proferir uma decisão cerca de cinco semanas depois de a ação ter sido movida. Infelizmente, não conseguimos apurar qual foi o sentido da decisão.

Mais ou menos pela mesma altura, em Portugal, uma jornalista do jornal Público experimentou um dia sair à rua de cadeira de rodas, para uma reportagem de que demos conta n'A Nossa Terrinha. Os problemas começaram logo que a jornalista pôs as rodas na rua. Sem surpresa, de resto. As coisas melhoraram, mas pouco: no domínio da acessibilidade no espaço público urbano, a exclusão social das pessoas com mobilidade reduzida continua a ser uma realidade em Portugal – uma realidade que nos devia envergonhar.

A lei publicada em 1997 fixou um prazo de 7 anos para que fossem garantidas as acessibilidades nos espaços públicos – prazo que terminou em 2004. Mas a lei não foi cumprida e, como prémio para os infratores – públicos e privados -, foi publicada uma outra em 2007 que estabeleceu um novo prazo, desta feita até 2017 para os equipamentos anteriores a 1997 e até 2012 (já o próximo ano…) para os equipamentos posteriores a 1997. Mesmo que muitas vezes pareça o contrário, as obras novas devem garantir a acessibilidade das pessoas com mobilidade reduzida. A lei prevê, em todo o caso, ambíguas exceções que, na prática, legitimam que esses cidadãos continuem a não ter o direito de circular em parte substancial do espaço público.

É possível que a história da anterior lei se venha a repetir: decorrida a maior parte do novo prazo fixado (quase todo o prazo, no caso das obras posteriores a 1997), e segundo a Associação Portuguesa de Deficientes, o incumprimento da lei continua a ser uma realidade. Relatórios de avaliação oficiais, não há: a Inspeção-Geral da Administração Local está obrigada a publicar, desde 2007, relatórios anuais de avaliação da aplicação da lei – mas nenhum foi publicado. Até ao fim de 2010, eram muito poucos os municípios com planos locais de acessibilidade aprovados. E as perspetivas futuras não são risonhas: com o país financeiramente de rastos, a desculpa dos cortes orçamentais é agora uma “saída” possível.

Por outro lado, os portugueses queixam-se muito pouco nesta área: segundo a Inspeção-Geral da Administração Local, não foram recebidas quaisquer denúncias neste domínio, em consequência do que não têm sido feitas inspeções. Aliás, nos quatro anos de vigência da atual lei, foi aplicada uma única multa em Portugal, pela Câmara Municipal de Mirandela, a um particular (mas cumprirá a Câmara de Mirandela a lei?...).

Não é fácil destacar o que é mais chocante.

Custa a entender como é que esta não é uma questão prioritária. É difícil perceber, por exemplo (e só para citar um exemplo), como é que a Câmara Municipal de Lisboa achou prioritário gastar, entre 2009 e 2011, 20 500 000,00 € na repavimentação de ruas da cidade (para melhorar o conforto da circulação rodoviária), continuando a cidade a ter problemas básicos ao nível da acessibilidade das pessoas com mobilidade reduzida.

Mais difícil perceber é como é que há obras públicas novas que são executadas sem que se garanta a acessibilidade para todos...

[Foi o caso, por exemplo, dos acessos a duas estações de comboios no Estoril (Linha de Cascais), cuja reconstrução terminou há poucos meses, não tendo a obra incluído rampas de acesso para pessoas com mobilidade reduzida – segundo a REFER, por causa do “impacto negativo” que as rampas teriam na ocupação do espaço público.]

...e outras que criam novas barreiras à acessibilidade. Os exemplos são, infelizmente, numerosos.


Vejam a continuação na: "A Nossa Terrinha" porque vale a pena.

1 comentário:

  1. Texto maravilhoso!

    Eu tenho mobilidade reduzida - miastenia gravis. Vivo nessa condição há anos. Uso bengala e andar é difícil, até evito para não me sentir mal.

    Mas como viver sem se deslocar? Não vive.

    Esta limitação me custa muito caro.

    Saudações do Brasil!

    Abraço!

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