sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Grito de revolta de um tetralégico

Chove. Chove muito. É um daqueles dias de chuva intensa. Como se isso não bastasse está vento e frio. Um temporal extremamente desagradável. No entanto é dia de trabalho. Tenho de colocar a capa para a chuva na cadeira. É assim a senda de quem é tetraplégico. Quem me ajuda? A minha Mãe. Sempre a minha Mãe com o seu carinho e paciência. 

Já antes me tinha colocado na cadeira, antes disso tinha-me vestido, e antes ainda tinha-me trocado de posição, dado banho, feito a higiene… Neste dia como em todos os dias. Um ciclo de rotinas que, alguém como eu, um tetraplégico não consegue fazer sozinho. Ela está sempre lá pronta para me ajudar com todo o seu amor de mãe. Um trabalho pesado e paciente que faz sem se queixar muito, pois quer o melhor para mim. 

Já é assim há vinte anos. Desde que uma lesão vertebro medular na c5 me deixou tetraplégico. Fisicamente uma espécie de bebe grande com mente adulta. Cuida de mim sem ter nada em troca sem ser o meu bem-estar. Abdica do tempo para si para que eu possa viver. É assim a minha Mãe. Uma Mãe com M grande! Tudo que sou a ela o devo.

Colocar a capa é demorado, assim como vestir e tudo o resto. Mais de meia hora para me preparar para sair à rua. No inverno é mais complicado e os setenta anos da minha mãe tornam esta tarefa ainda mais lenta. A idade não perdoa e a lentidão vai-se tornar maior, essa é a realidade!
Mesmo assim estamos prontos. Ela faz questão de me acompanhar porque dirigir a cadeira com a capa naquelas condições climatéricas é complicado e a minha Mãe, zelosa, não quer que me aconteça algum acidente. A verdade é que preciso mesmo de alguém que ajude entre o trânsito.
Cerca de um quilómetro divide a minha casa do meu trabalho. O trajecto é um inferno com a chuva e o vento a virem de frente. A minha Mãe segue a meu lado. Torna-se impossível abrir o guarda-chuva por causa da ventania. A única coisa que a protege da chuva é um impermeável e um chapéu que enterrou na cabeça para que não voasse.

Vinte minutos depois chegamos ao destino. Parece que demorou muito mais. Neste dia não posso mesmo faltar porque o meu trabalho exige horários e datas limite. (Sim, apesar de tudo estudei e arranjei um emprego que requere responsabilidade. Tudo isto porque a Minha mãe estava lá a abdicar da sua vida para que eu pudesse ter a chamada “vida normal”.)
Este é um desses dias em que tenho de cumprir um prazo. Claro que se não fosse trabalhar hoje (e bem me apetecia), ninguém morria. Mas iriam acontecer reclamações e a minha competência ia ser posta em causa, bem como da minha entidade empregadora. A minha Mãe não quis que isso acontecesse por isso veio comigo, como em tantos outros dias.

Agora o processo é inverso. Tirar a capa e o casaco. São mais dez minutos até que fique pronto. Sim, demora tempo e a minha Mãe não é jovem, portanto tudo é mais lento. Depois de sacudir a roupa e a pendurar no cabide voltou para casa para se secar a ela própria e à tarde repetir o processo para me buscar.

Quando cheguei à minha secretária senti que as lágrimas queriam sair. Fui tomado por uma tristeza e um cansaço. Não um cansaço físico, mas aquele cansaço que só os que rumam contra a corrente e lutam para mudar mentalidade conhecem. Será que isto tudo vale a pena?
Tenho quarenta anos e a minha Mãe setenta. Até quando poderia cuidar de mim para que pudesse ter uma vida digna? Ela devia estar a gozar um merecido descanso, em vez disso, na sua aposentadoria está refém dos meus horários e das minhas necessidades. Senti-me mal. Triste e culpado. Será que isto vale mesmo a pena?

Juro que me apeteceu apresentar a carta de despedimento naquele momento. Antecipar o futuro e arranjar uma instituição que me acolha. Sim! Senti-me derrotado… Ou estaria apenas a antecipar o futuro? O tempo não perdoa e sem um projecto de Vida Independente não poderei continuar esta vida de pessoa integrada na sociedade. Tao simples quanto isso.

O Estado, que tanto diz que protege os mais desprotegidos, limita-se a dizer que vai fazer estudos atrás de estudos para tornar a Vida Independente uma realidade. Intenções bonitas que não passam disso mesmo, intenções que não saem do papel. Passam-se os anos e a esperança que aconteça alguma coisa vai desaparecendo.
A verdade é que sem alguém que me auxilie não sou nada. A minha mente continua activa, inteligente, informada, mas sem alguém que seja as minhas mãos não sou nada! Mesmo tendo tanto para dar à sociedade.

Lembrei-me do Eduardo Jorge e da sua luta que é igual à minha. Apesar de todos os esforços e iniciativas que levou a cabo, teve de ser violentamente arrancado de casa e internado num lar. Apesar de ter conforto, auxilio, está fora do seu ambiente, da sua terra, da sua faixa etária, sujeito a regras que não são as suas. A instituição é muito bem-intencionada é certo e de louvar. Mesmo assim não deixo de acreditar que seja uma prisão dissimulada. 

Num país democrático, que diz proteger o seu povo, prender alguém somente por ter uma deficiência física não deixa de ser um contra senso. Sem um projecto de Vida Independente sinto-me completamente desprotegido. Por isso este cansaço tomou conta de mim. Já não é revolta nem falta de vontade de lutar. É apenas desapontamento.
A minha Mãe não tem direito a viver a vida dela? Não tem direito a ser compensada pelos serviços que me prestou e presta?

Não tenho direito a viver na minha própria casa? A trabalhar? A pagar impostos?
Bolas! Não peço nada por egoísmo, quero devolver a independência que me derem. Tenho quarenta anos, sou um jovem nos dias que correm, porque a Vida Independente ainda não existe em Portugal?
Não sou só eu. São muitas vozes caladas que gritam em silêncio ou simplesmente desistem porque a vida é mesmo assim! Não, não é! Não tem de ser. A vida é dura sim, para todos. As coisas são como são mas não há necessidade de me castrarem a alma. Não quero passar os meus dias num lar, desfasado de mim mesmo, condenado a ser o eterno coitadinho lá do sítio quando tenho tanto para oferecer.

Agora a tristeza transformou-se em revolta e este texto surgiu. Partilho com o Eduardo porque sei que ele me compreende. Nestes dias em que tanta gente se mobiliza com urgência para debater a eutanásia e ninguém o faz pela Vida Independente, parece-me que a morte é mais importante do que a dignidade. Parece que um mosquito a zumbir à noite, incomoda mais do que este assunto!
À tarde volto para casa à chuva na companhia da minha Mãe. Sempre a minha Mãe com todo o seu carinho a cuidar de mim. Chove menos, ainda bem. As obrigações do meu trabalho estão compridas como as de outro colaborador qualquer, mas há em mim muito a desabafar com revolta por isso tenho de escrever isto.

Este texto é só um texto. Só palavras de revolta como tantas outras que caem no esquecimento. Como as de tantas outras de quem revindica os seus direitos. Ainda assim escrevo para canalizar o meu grito na esperança, que teima em não morrer, de que a Vida Independente se torne realidade em breve…

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7 comentários:

  1. Tem todo o direito a ser diferente, mas...igual a todos nos, com os mesmos direitos!!
    Não perca a coragem...a esperança...mesmo que seja a ultima coisa que tenha.....sem sonhos não somos nada!!
    Felicidades....

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  2. Sinto isso muitas vezes. Embora eu tenha a sorte de poer trabalhar a partir de casa, há imensos outros sacrifícios que as pessoas que me rodeiam fazem por mim. Queria poder retribuir de alguma forma. A minha presença e palavras de apoio ajudam, mas gostava de poder fazer mais pelas pessoas que já tanto fizeram por mim. Enfim, há dias assim, em que se pensa mais nessas coisas. Força e esperamos que o projeto Vida Independente seja uma realidade um dia. Abraço.

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  3. Obrigado por divulgares este texto está mt realista e transmite bem o que nos vai na ALMA!
    Não sei quanto tempo ainda temos que esperar por um projecto q já devia ser real à muito tempo!! É mesmo URGENTE...não ficar indiferente a estes gritos de revolta :(
    Mas até quando? Passar da lei à prática é UTÓPICO?

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  4. Um dia ouvi o Eduardo Jorge a dizer que sonhava ser paraplégico... era o seu maior sonho!? Está tudo dito relativamente às dificuldades que as pessoas tetraplégicas enfrentam todos os dias. O projeto de Vida Independente tem de ser implementado. Como todos podemos ajudar... seria importante falarmos dele nos nossos círculos e pedir que se partilhe essa visão. Não é fácil mas há que tentar. Muitas vozes podem fazer a diferença. Este "Grito de Revolta" só pode vir de alguém muito forte. Um retrato que nos envergonha a todos. Um beijo à super-mãe.

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  5. A divulgação das ideias envolvidas no projeto de Vida Independente, é uma das coisas mais importantes nesse caso, pois o pior de tudo é a desinformação. Organizar-se para fazer uma divulgação nas redes sociais, colocando a opinião pública em favor da causa. Independente do tempo que leve, é preciso despertar a sociedade, para que mudanças possam acontecer.

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    1. O CVI-Centro de Vida Independente tem realizado vários eventos com a finalidade de informar, o próximo será no dia 5 de maio em Lisboa, intitulado "Dia Europeu da Vida Independente".
      Foi também recentemente publicado um documentário do jornal Público, sobre o assunto: "O que é isso de vida independente?" que pode ver aqui: http://www.publico.pt/multimedia/video/o-que-e-isso-de-vida-independente-20151013-170549

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  6. Como Pai ausente (divorciado).....o País (Portugal) a isso me obrigou há muitos anos..... infelizmente deparo-me com o meu Filho nessa mesma situação, vítima de um acidente. Há que encarar após o choque a realidade.... há que entender a participação dessa Mãe tal como a Mãe do meu Filho.....não à resignação, não ao deixa andar.....mas a "vida" tem destas "coisas" infelizmente. Aos "Tetraplégicos" teremos de lhes dar o máximo apoio, mas por vezes o País onde vivemos não nos dá forma nem atitude de o conseguir. Conto breve poder estar presente...muito mais haverá para dizer, mas....o eterno mas. às Mães e Pais que tudo fazem pelo bem estar destes acidentados ( conheço muitos ) bato palmas.

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