Quando a deputada federal Mara Gabrilli (PSDB-SP), 46 anos, foi procurada por um amigo editor para escrever a própria biografia, em 2008, ela desconversou. Tetraplégica desde 1993 após um acidente de carro, a então vereadora de São Paulo não se sentia pronta para expor sua vida. Um ano depois, porém, ela topou se encontrar com a jornalista Milly Lacombe para contar algumas de suas histórias. Das conversas regadas a vinho em um bistrô paulistano, surgiu o livro “Mara Gabrilli – Depois Daquele Dia” (Ed. Benvirá, 2013). Relatora do Estatuto da Pessoa com Deficiência, a deputada se envolveu em uma polêmica com sua própria base eleitoral. Por sua campanha contra o veto da presidenta Dilma a um parágrafo da lei que instituiu a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista foi chamada de “demônio” por famílias que defendiam a retirada do trecho para garantir matrículas de autistas em escolas regulares.
ISTOÉ -Como é a realidade de quem fica tetraplégico no Brasil e não tem as condições financeiras da sra.?
MARA GABRILLI -Se acidentar, como eu me acidentei, sem recursos, no Brasil é bastante complicado. Hoje até temos opções de tratamento de ponta, como a Rede Lucy Montoro e a AACD, mas todas estão superlotadas. Fora que circular pelas cidades é difícil demais, as calçadas são terríveis. Soma-se a isso o fato de que poucas empresas contratam pessoas com deficiência. O despreparo é generalizado.
ISTOÉ -A sra. tem dificuldade de falar do acidente?
MARA GABRILLI -Conforme fui me distanciando do momento mais trágico, ficou mais fácil. Agora, lendo o livro, me emociono. Recentemente, li o relato do dia mais difícil da minha vida. Voltei da reabilitação nos EUA, cinco meses após o acidente, no dia 24 de dezembro. Voltei para uma cidade e uma casa que não eram mais minhas, com um corpo que não reconhecia e com pessoas cuidando de mim a toda hora. Era como se tivessem me jogado em um filme no qual não sabia atuar. Li o relato desse dia e chorei. Mas também fiquei feliz por ver o quanto evoluí desde então.
ISTOÉ -O que fez nesse 24 de dezembro?
MARA GABRILLI -Era Natal, então fui com minha família a uma festa na casa de amigos. Encontrei umas 60 pessoas, muitas conhecidas. Foi estranhíssimo. Lá estava eu, com aquele grupo de conhecidos, mas agora tetraplégica, branca, seca de magra, careca, com cicatrizes no pescoço e a cabeça e os braços apoiados em travesseiros. Alguns me cumprimentaram como se nada tivesse acontecido, outros faziam cara de piedade. Me senti muito mal. Felizmente, no meio daquilo tudo, ouvi um “Marinha!”. Era o filho de uma amiga que tem deficiência intelectual. Ele me abraçou, me deu beijos e brincou com meu braço. Foi o único que me tratou naturalmente.
ISTOÉ -Qual foi a maior dificuldade na hora de retomar a vida?
MARA GABRILLI -Me tornar dependente. Foi tudo muito difícil, voltar para casa dos meus pais, perder a minha independência financeira, perceber que eu ficava o dia inteiro em função do meu corpo. Tive de aceitar que perdi quase tudo que construí até os 26 anos. E viver sem saber do futuro. Não sabia quando eu voltaria a ter um pouco de independência.
ISTOÉ -Como fica a sexualidade na tetraplegia?
MARA GABRILLI -As pessoas têm pouca informação. Muitas vezes um médico diz que nunca mais vai rolar e a pessoa acredita. Não é assim. Não é porque virou cadeirante que virou árvore. Dá para ter uma vida sexual com intensidade. O desejo continua e o corpo de uma pessoa com uma lesão medular é muito dinâmico. Às vezes, quando descubro um lugar mais sensível chego a levar um susto. O corpo mudou, mas está ali. A gente vai se descobrindo.
ISTOÉ -O tratamento que a sra. fez com células-tronco retiradas da sua medula óssea deu resultado?
MARA GABRILLI -É difícil mensurar a melhora que veio em função, exclusivamente, do implante. Mas das 30 e poucas pessoas que passaram pelo protocolo, 16 registraram melhora – e eu estava entre esses 16. Depois de um tempo, só dois continuaram evoluindo – eu e mais um homem. Mas continuo tetraplégica, né? Não saí andando.
ISTOÉ -A presidenta Dilma vetou um parágrafo da Lei 12.764 que daria às escolas autonomia para aceitar ou não um aluno autista. A sra. foi contra o veto, por quê?
MARA GABRILLI -Primeiro, não era isso que dizia o parágrafo. A autonomia, e isso estava claro, era da família e não das escolas. O que o artigo dizia era que, caso a família decidisse que o filho autista não conseguiria estudar na escola regular, o governo tinha de prover uma alternativa de educação. Argumentei que os pais que veem o filho autista não se adaptar ao colégio regular teriam de bancar uma outra escola para o filho, porque a rede pública não oferece mais uma opção. Acho injusto.
ISTOÉ -Então por que houve resistência à sua tentativa de derrubar o veto?
MARA GABRILLI -Fui apedrejada em praça pública. Me transformaram num monstro e chegaram a me chamar de demônio. Diziam que eu queria afastar a pessoa com deficiência da escola regular. Nunca quis excluir ninguém. Criei, inclusive, um artigo que pune ferozmente o gestor escolar que rejeita a matrícula de uma criança, seja qual for a deficiência. Mas percebi que estava criando aflição nas pessoas com essa tentativa de derrubar o veto. Conversei com algumas delas e disse que não brigaria mais por isso.
ISTOÉ -Por que o assunto gera tanta polêmica?
MARA GABRILLI -As pessoas olham muito para o próprio umbigo. Para garantir o lugar do filho com autismo na escola regular, tem gente disposta a privar outra família de ter o filho numa escola especial. A educação não está boa para nenhum aluno, com ou sem deficiência. A polêmica surge porque as escolas, fugindo de sua responsabilidade, ainda recusam matrículas e não se adequam à diversidade.
ISTOÉ -Nas escolas particulares, isso ocorre de forma velada. Por que a recusa continua a acontecer?
MARA GABRILLI -Deveria haver uma orientação clara dos Conselhos Estaduais de Educação de que alunos com deficiência não podem ter a matrícula recusada, mas isso não acontece. Em São Paulo, por exemplo, soube que essa orientação pode não existir porque o Conselho tem sido presidido e representado, há muitos anos, por diretores e donos de colégios particulares. Um promotor me disse que a presidência fica variando entre gente da Escola Móbile e do Colégio Bandeirantes, que, tudo indica, não têm interesse em receber alunos com deficiência. E, ao terem a matrícula recusada pelos colégios, os pais não costumam denunciar a escola ao Ministério Público.
ISTOÉ -Por quê?
MARA GABRILLI -Porque eles querem resolver a questão da educação do filho, que é prioridade. Passa o tempo, a criança consegue uma matrícula em outro lugar e a situação acaba ficando por isso mesmo. Estudo, inclusive, apresentar uma denúncia ao procurador-geral do Estado. O Conselho Estadual de Educação de São Paulo faz vista grossa para o que está acontecendo.
ISTOÉ -As Apaes parecem incomodadas com a decisão de colocar todos em escolas regulares porque poderiam perder alunos e repasses de verba do governo.
MARA GABRILLI -Nem todas as Apaes têm escola. Algumas oferecem apenas atividades como fisioterapia, terapia ocupacional, clínicas, mas não escola. Essas não podem mesmo receber o repasse da educação. Se recebem, isso precisa ser corrigido, pois não dá para considerar terapia de música, por exemplo, como educação. A distinção é importante. No meu entendimento do Plano Nacional de Educação, Apaes como a de São Paulo, que tem um trabalho exemplar e é escola, não correm risco algum de perder o convênio com o governo.
ISTOÉ -Na discussão do Estatuto da Pessoa com Deficiência fala-se de leis que não respeitam o direito da pessoa com deficiência. Pode dar um exemplo?
MARA GABRILLI -Hoje, se um casal com síndrome de Down quer se casar, leva mais de um ano para conseguir a autorização de um juiz por conta das restrições no Código Civil. O Estatuto propõe mudar isso porque a legislação pode proteger o deficiente intelectual, ser protetiva, mas jamais restritiva. Até porque não dá para dizer que a pessoa, por ser deficiente intelectual, não sabe escolher um parceiro. Por acaso quem não é escolhe bem sempre?
ISTOÉ -O deficiente é sub-representado politicamente?
MARA GABRILLI -Está melhorando. Vivo encontrando parlamentares com deficiência. Hoje somos três cadeirantes no Congresso, sendo eu a única tetraplégica. E olhando o pessoal que circula por lá, já contei uns sete deputados que mancam. Ou seja, têm alguma deficiência.
ISTOÉ -O Congresso atende aos requisitos de acessibilidade?
MARA GABRILLI -Logo que fui eleita, me disseram que eu teria de fazer meus discursos do chão porque a tribuna não era acessível. Não aceitei. Seria muito incoerente, na casa que aprovou a lei de acessibilidade, eu fazer discurso do chão. Corri atrás de um arquiteto que já tinha feito uma intervenção de acessibilidade numa obra do Niemeyer, levei até Brasília, fizemos o projeto e encontrei uma empresa de elevador que topasse executar a obra. Hoje, já discurso da tribuna, mas ainda não chego à Mesa Diretora porque tem degrau. Mas o presidente Henrique Alves me garantiu que fará a obra de adequação no recesso de 2014.
ISTOÉ -Que tipo de reação observou entre seus colegas quando chegou ao Congresso?
MARA GABRILLI -Muitos esticavam o braço para me cumprimentar. Isso, para mim, é comum, não é por isso que me lembro que sou tetra. Mas sei de pessoas que passaram dias se martirizando por isso. Teve também um deputado velhinho, não sei quem era, que me perguntou por que eu não votava usando o dedo, como todos. Quando expliquei que não mexia os braços, ele olhou para mim e começou a chorar. Tentei acalmá-lo, mas não adiantou. Hoje sinto o carinho e a admiração deles, que ouvem o que eu falo. Lá, percebi o quão mesquinho era o ambiente na Câmara dos Vereadores de São Paulo.
ISTOÉ -Como assim?
MARA GABRILLI -No Congresso há uma grandeza. Na Câmara, tinha vereador que ficava de olho no que eu ia fazer, para empatar meus projetos. Meus maiores inimigos eram da minha própria bancada. Talvez porque há uma competição ferrenha pelos espaços eleitorais. Certa vez, estava tentando levar um time de basquete para treinar num clube e, quando cheguei, um vereador apareceu lá de louco para não deixar acontecer porque era reduto dele. Era esquisito.
Fonte: Ser Lesado