Neste dossier, o
deputado bloquista Jorge Falcato afirma que é urgente integrar as pessoas com deficiência na comunidade.
Eduardo Jorge escreve sobre promessas não cumpridas e um tetraplégico, que optou por manter o anonimato,
descreve os obstáculos que tem de vencer no dia a dia e pergunta se não tem direito a viver na sua própria casa.
Publicamos ainda uma
cronologia sobre os passos mais significativos no processo de reconhecimento do direito à Vida Independente em Portugal, uma
entrevista à secretária de Estado da Inclusão das Pessoas com Deficiência, Ana Sofia Antunes, e
depoimentos de três pessoas que querem ser olhadas enquanto cidadãs de pleno direito.
Falar de Vida Independente em Portugal é falar de uma mão cheia de nada. É falar de promessas não cumpridas, de homens sem palavra, de políticos sem respeito pelas pessoas com deficiência e que utilizam a mentira como ferramenta política. É falar de desilusão e abandono. Do sonho adiado.
A luta iniciou-se em outubro de 2013, com a greve de fome que realizei em frente à Assembleia da República com o apoio do Movimento (d)Eficientes Indignados, movimento ao qual pertencia na altura. Suspendi-a devido às promessas do Secretário de Estado da Solidariedade e da Segurança Social do Governo do PSD/CDS ,Agostinho Branquinho, que em reunião na Assembleia da República, prometeu dar início ao processo legislativo para implementar a Vida Independente em Portugal.
A grande mentiraResolvi convidar para a respetiva reunião os meus colegas de direção do Movimento (d)Eficientes Indignados, Jorge Falcato (atualmente deputado), Manuela Ralha (atualmente presidente da associação Mithós), e também Cristina Capela (presidente da associação com o nome do seu filho menor, Rafaela Carole) como representante das mães cuidadoras. Por parte do Governo, participaram o já referido Secretário de Estado da Solidariedade e da Segurança Social, da altura, Agostinho Branquinho, José Madeira Serôdio presidente na altura, do Instituto Nacional para a Reabilitação (INR), as deputadas Maria da Conceição Jardim e Mercês Borges, e ainda representantes da Comissão para a Deficiência entre outros membros do Governo.
Na respetiva reunião o Secretário de Estado mostrou-se totalmente a favor das nossas exigências e ficou acordado:
1 - Abrir um endereço de e-mail no site do Instituto Nacional para a Reabilitação, com a finalidade de receber os nossos contributos sobre o que seria necessário para proporcionar uma Vida Independente às pessoas com deficiência, o que aconteceu;
2 - Fornecerem-nos um dossier com esses contributos no início do mês de janeiro;
3 - Iniciar os trabalhos de redação de legislação sobre a Vida Independente no final de janeiro com a minha participação, do movimento (d)Eficientes Indignados e demais representantes da comunidade de pessoas com deficiência.
Pensávamos lidar com gente de palavra, mas enganámo-nos. Em janeiro nada se passou. Só em fevereiro, e a nosso pedido, se realizou uma reunião em que constatámos que nada havia sido feito. Nenhum passo tinha sido dado na garantia de acesso à assistência pessoal por parte das pessoas com deficiência.
Essa reunião, realizada a 27 de fevereiro no Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social (MTSSS), começou da pior maneira. Não compareceu o Secretário de Estado. A desculpa para a sua ausência foi a presença da troika no edifício do Ministério. Fez-se representar pelo seu chefe de gabinete. Nela foi-nos fornecido somente um relatório sobre os contributos chegados ao endereço de e-mail, mas o pior estava para acontecer. Eu e o Movimento dos (d)Eficientes Indignados, teríamos de ser excluídos das negociações por não existirmos juridicamente. Ora essa exigência não existiu quando negociamos a minha suspensão da greve de fome.
Ao suspender a greve de fome fui claro, todo o processo de elaboração da Lei deveria ter o nosso contributo. Nada sobre nós, sem nós. Ninguém melhor do que nós conhece a nossa realidade e necessidades. Essa nova exigência fez-me de imediato ameaçar abandonar a reunião, o que acabou por acontecer.
De qualquer modo, mais uma vez foi-nos garantido que a lei avançaria, e seriam respeitados alguns princípios que são fundamentais para nós:
- O utilizador poderá contratar o serviço de assistência pessoal da sua escolha a fornecedores de serviços ou, directamente, contratar, treinar, supervisionar e, se necessário, despedir os seus assistentes pessoais;
- Os recursos necessários são canalizados para o utilizador de assistência através de pagamentos directos mensais que são geridos pelo próprio;
- É atribuído financiamento independentemente da causa ou diagnóstico médico relativo à deficiência da pessoa, da sua idade, da idade em que adquiriu a deficiência, da sua situação laboral ou cobertura de seguro;
- O direito ao pagamento de assistência pessoal não depende dos rendimentos ou bens do utente ou do seu agregado familiar;
- As condições de acesso a este financiamento prendem-se unicamente com as necessidades que a pessoa tem de assistência de outros para a realização de actividades da vida diária tais como higiene pessoal, comer, vestir, cuidados com a casa, apoio fora de casa, na cidade ou quando viaja, na escola, no trabalho ou nos tempos livres;
- Na avaliação das necessidades, a quantidade de horas de assistência pessoal é determinada de acordo com o que permita aos utilizadores de assistência, em combinação com o uso de produtos de apoio (ajudas técnicas), a adaptação do ambiente onde vivem e trabalham e o planeamento da acessibilidade do meio edificado da comunidade, ter as mesmas opções e oportunidades que teriam sem as suas deficiências.
Como bem afirma Adolf Ratzka, um dos maiores especialistas na matéria, Vida Independente não significa que queiramos ser nós a fazer tudo e que não precisamos da ajuda de ninguém ou que queiramos viver isolados. Vida Independente quer dizer que exigimos as mesmas oportunidades e controlo sobre o nosso dia-a-dia que os nossos irmãos, irmãs, vizinhos e amigos sem deficiência têm por garantidos. Nós queremos crescer no seio das nossas famílias, frequentar a escola do bairro, trabalhar em empregos adequados à nossa formação e interesses e constituir a nossa própria família.
Passado quase um ano das promessas iniciais do Sr. Secretário de Estado, continuava tudo igual. Nada tinha sido feito, o que me levou a agir mais uma vez, desta vez resolvi realizar entre 23 e 25 de setembro de 2014 um novo protesto. Realizei uma viagem de 180km, durante três dias, em cadeira de rodas, da Concavada/Abrantes ao Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, em Lisboa, onde entreguei uma carta aberta ao Secretário de Estado, a relembrá-lo das promessas não cumpridas.
Escusado será dizer que mais uma vez fomos ignorados. O único resultado conseguido com esse esforço foi o agravar e muito do meu estado de saúde.
Novo governo, nova frustraçãoCom a tomada de posse de um novo Governo em novembro de 2015, houve um renascer de esperança. Foi criada a Secretaria de Estado para a Inclusão das Pessoas com Deficiência, e o seu comando atribuído pela primeira vez na nossa democracia, a uma Secretária de Estado com deficiência, neste caso cega, e o partido Bloco de Esquerda elege o nosso primeiro deputado em cadeira de rodas. Nem cria acreditar. Parecia que os deuses se tinham unido a nosso favor, mas o entusiasmo durou pouco tempo. Com ele veio mais uma vez a decepção, e como dizem os mais antigos, “quanto maior é a expectativa, maior é a desilusão”. Foi exatamente o que me aconteceu. Mais uma grande deceção.
Aguardei, reuni-me com a Secretária de Estado de para a Inclusão das Pessoas com Deficiência, Ana Sofia Antunes, esperei...esperei...confiei...dei o benefício da dúvida...mas passados quase dois anos nada foi feito. Tempo demais para quem não tem nada. Compreendi que não deve ser fácil governar nas circunstâncias que se encontrava o país, mas tinha a meu favor a responsável pela área da reabilitação ser uma de nós. Sim, uma de nós. Fez parte connosco da coordenação do Movimento dos (d)Eficientes Indignados, marcou presença em todas as minhas ações de protesto, e assim como nós, exigia e lutava por mudanças urgentes. Como não esperar mais de alguém que lutava connosco pelos mesmos direitos?
Durante estes 17 meses o seu trabalho em prol da Vida Independente, limita-se a uma proposta apresentada recentemente para o início de um projeto-piloto que nada tem de Vida Independente. Após anunciar um novo protesto, que consistia em entregar-me numa cama em frente à Assembleia da República, durante os dias 21, 22, 23 e 24 de maio aos cuidados do Presidente da República, do Primeiro-Ministro e do ministro do Trabalho da Solidariedade e da Segurança Social, Vieira da Silva, assim como a pressão contínua do Bloco de Esquerda, resolveu realizar algumas alterações ao referido projeto, sendo a mais significativa a alteração das 40 horas semanais propostas como máximo de assistência pessoal durante o projeto-piloto, permitindo que pelo menos 30% dos participantes no referido projeto-piloto, beneficiem de assistência pessoal sem limite de horas.
Quanto ao deputado Jorge Falcato, não poderei afirmar o mesmo. Nas suas circunstâncias, e com menos poder e ferramentas, tem realizado um trabalho extraordinário. Foi graças ao seu esforço que o tema Vida Independente foi incluído no Orçamento de Estado para 2017. Para além disso, não precisa encontrar espaço na sua agenda para reunir e discutir este e outros temas de interesse comum ou não. Encontra-se à distância de um telefonema, ou nos mesmos lugares de sempre, facebook e e-mail. Nada mudou. A sua disponibilidade e simplicidade manteve-se. Continua a lutar ao nosso lado mantendo-se um dos nossos, independentemente do cargo político que ocupa.
Provas sobre a falta de vontade políticaE quanto a mim a filosofia de Vida Independente não é uma realidade no nosso país porque os sucessivos governos não o pretendem. Nunca aceitei a resposta da falta de verbas para implementar este apoio. Se existem verbas para financiar um lar residencial em 1.004,92 euros mensais por cada utente, e um Centro de Atividades Ocupacionais em 509,51 euros por 8 horas de presença diárias, fora os valores pagos pelas beneficiários e respectivas famílias, também tem de existir para nos permitir assistência pessoal ilimitada.
Para a contratação de um assistente, o Estado disponibiliza-nos neste momento aproximadamente 100 mil euros mensais. Não será certamente com este valor e muito menos através do serviço de apoio domiciliário disponibilizado por uma IPSS, como propõe o Estado, na proposta apresentada sobre modelo de apoio à Vida Independente, que resolverá os nossos problemas. Não existem valores que pagam a nossa liberdade. Direitos humanos e dignidade não têm que estar limitados por questões financeiras.
Realço que libertação, autonomia e Vida Independente não tem só a ver com assistência pessoal, vai muito mais além. O que adianta ter o apoio de um assistente pessoal mas encontrar-se preso num 5º andar sem direito a acessibilidades, ou estar impedido de aceder ao trabalho, educação, formação, lazer.
Precisamos de mais mudançasSe nada de concreto foi feito por este Governo em relação à Vida Independente, o mesmo acontece em relação a outros assuntos. Só para destacar alguns exemplos:
- Produtos de Apoio persistem os problemas na sua atribuição. Ninguém se entende, Cada Centro Distrital da Segurança Social, faz as suas leis e toma as decisões que mais lhe convém. A maioria dos médicos continua a ter dificuldades em prescrever os Produtos;
- A Lei das acessibilidades foi mais uma vez esquecida. Quando se esperava que fosse finalmente objeto de interesse e resolução, tudo está a ser preparado para prolongarem por mais 10 anos a possibilidade dos infratores continuarem a agir sem serem punidos;
- O Imposto Único Circulação deixou de ser isento para muitas pessoas com deficiência, etc.
Quanto a mim continuo institucionalizado num lar de idosos porque o Estado me proibiu e continua a proibir de viver na minha casa e meu ambiente. Felizmente fui acolhido no Centro de Apoio Social da Carregueira, uma IPSS como poucas, que para além de me proporcionar uma excelente estadia, também me contratou como assistente social. Já a maioria dos outros colegas desenraizados compulsivamente como eu, não tiveram essa sorte. Encontram-se em lares onde perderam a sua identidade, deixaram de ser gente para passar a ser somente números.
As nossas vidas nas nossas mãosVisto sermos os melhores peritos nas nossas necessidades, sigamos os conselhos de Adolf Ratzka, precisamos mostrar as soluções que queremos, precisamos de estar à frente das nossas vidas, pensar e falar por nós próprios - tal como qualquer outra pessoa.
Com este fim em vista nós temos de nos apoiar e aprender uns com os outros, organizarmo-nos e trabalharmos por mudanças políticas que conduzam a uma protecção legal dos nossos direitos humanos e cívicos.
Nós somos pessoas profundamente comuns partilhando a mesma necessidade de se sentirem incluídas, reconhecidas e amadas.
Eu não desistirei. Tenho um corpo aprisionado, mas a minha mente é livre, só eu a comando.
*Eduardo Jorge - ativista pela Vida Independente, autor do blogue “
Tetraplégicos”.