Dia 10 de junho de 1978. Jorge Falcato participara num protesto contra uma manifestação fascista a favor do 'Dia da Raça'. Acabaria alvejado na zona da traqueia por um polícia. Na sequência dessa bala, perderia a mobilidade. Tinha 24 anos.
“Tinha uma filha de 11 dias. Quando fui levado para o hospital de Santa Maria, num Mini, sentia que se fechasse os olhos morria. E ia a pensar nisto, que afinal era fácil morrer, era só deixar-me descansar. Mas lembrava-me de que não podia porque tinha acabado de ter uma filha, conta ao Notícias ao Minuto, recordando a luta constante entre deixar fechar os olhos e mantê-los abertos. Decidira nesse momento que tinha de viver. Mas há mágoas que se mantêm tão vivas quanto as imagens daquele dia.
Inesperadamente eleito deputado em 2015, não é um homem do Parlamento, admite, confessando que ainda estranha ouvir “Boa tarde, senhor deputado!”. Desde sempre no ativismo político, agora na Assembleia da República tem aproveitado para defender os direitos das pessoas com deficiência, que diz continuarem a ser “segregadas e excluídas” de tudo na sociedade.
Tem bem presente o dia em que foi alvejado por um agente da Polícia de Segurança Pública?A história está bem presente. Estava a protestar contra a realização de uma manifestação fascista. Houve alguns confrontos, nada de coisas assim muito graves. Os confrontos já tinham acabado, ia-me embora e comecei a ouvir tiros. Voltei para trás para ver o que é que se passava e foi nessa altura que levei um tiro. Foi na rua do Loreto, no Largo Camões. Eu estava em frente ao arco da Rua da Rosa. Logo no início da rua estava a manifestação fascista concentrada e com três polícias à frente. Vejo um com uma G3 na mão e pronto levei um tiro.
Mas foi intencional?Foi. Não se atira àquela distância. Uma G3 tem um tiro útil de 800/1000 metros e eu estaria a cerca de 60/80 metros.
Foi mais do que estar no local errado à hora errada...Claro que estava no local errado à hora errada. Se estivesse meio metro ao lado não teria levado o tiro. Na sequência de investigação que foi feita pela Polícia Judiciária, vim a saber que aquele polícia tinha carregado para aí dois carregadores de pistola, tinha ido buscar uma G3 que não lhe pertencia a um carro da Polícia onde descarregou depois mais dois carregadores de G3. De maneira que, ele estava com vontade de provocar ferimentos, no mínimo. Não se dispersam manifestantes a tiros de G3. Aliás, depois de me atingir a mim, avançam, e vai matar o José Jorge Morais numa das transversais. Um jovem estudante de Medicina que vai a fugir, de costas, e ele faz uma rajada de metrelhadora a varrer a rua. Há claramente intenção de matar ou de ferir.
É estranho como uma coisa tão pequena como uma bala provoca tanto impacto. A sensação que tive foi como se tivesse levado com uma tábua no peito. E caí logo de costas, já não consegui andar.
Iria à manifestação na mesma?Claro.
Se soubesse que ia levar um tiro àquela hora naquele sítio tinha-me posto no tal meio metro ao ladoMas arrepende-se de ter voltado para trás para ver o que se passava?Não é uma questão de arrependimento. São coisas que acontecem. Se soubesse que ia levar um tiro àquela hora naquele sítio tinha-me posto no tal meio metro ao lado. Não vale a pena estar a lamentar ou ter arrependimentos. Não. Protestei contra a realização de uma manifestação fascista e acho que tive razão em protestar.
E o que é que aconteceu ao polícia que o atingiu? Chegou a ser julgado?Nada. Tem tudo a ver com o funcionamento da justiça em Portugal, na altura penso que ainda seria pior do que agora. O julgamento foi feito passados 10 anos e a estratégia da polícia foi instruir os polícias para contrariar tudo o que tinham dito na fase inicial. Contradisseram todos os seus próprios depoimentos, o que levou a que fosse considerado pelo tribunal que não se havia feito prova de que era aquele polícia. Construíram outra história. Os agentes da Judiciária sabiam qual tinha sido o polícia. Houve toda uma construção para ilibar um dos polícias. Mas também terá havido uma estratégia errada da acusação porque havia tanta a certeza de que era aquele polícia que só se acusou aquele polícia. Se tivessem todos acusados do crime, se calhar aquele não se tinha safado.
E o Estado, o que é que fez em relação ao seu caso?Nada. Rigorosamente nada. O julgamento foi, de certa maneira, doloroso. Demorou quase um ano. Ir a sessões, ouvir polícias a mentirem, ouvir o advogado do comando distrital da PSP a acusar-me a mim de ter estragado a vida ao polícia. E eu também não tinha dinheiro para investir em advogados e não pus um processo cível contra o Estado português. Deveria tê-lo feito.
Ainda sente alguma mágoa em relação a isso?Claro. Aí estou arrependido de não ter feito alguma coisa. Sabe outra coisa curiosa de quando levei o tiro? Tinha uma filha de 11 dias. E quando fui levado para o hospital de Santa Maria, num Mini, sentia que se fechasse os olhos morria. E ia a pensar nisto, que afinal era fácil morrer, era só deixar-me descansar. Mas lembrava-me que não podia porque tinha acabado de ter uma filha. Então fechava um bocado os olhos, depois abria.
Se as coisas mudaram? É natural. Em 30 e tal anos, mau fora que não tivesse melhorado nadaO país tem mudado muito nas últimas décadas, depois do 25 de Abril. A maneira como tratamos as pessoas com deficiência acompanhou essa mudança do país?Só comecei a ter noção da exclusão e da segregação das pessoas com deficiência a partir do momento em que fiquei com uma deficiência. Se as coisas mudaram? É natural. Em 30 e tal anos, mau fora que não tivesse melhorado nada. Mas é e continua a ser um setor da população que está completamente esquecido, segregado, excluído de todos os processos sociais, que continua a a não ter as mesmas oportunidades que as outras pessoas. A própria sociedade constrói as barreiras à participação destas pessoas em todos os processos sociais, quer sejam as barreiras arquitetónicas, quer sejam as barreiras atitudonais ao nível do preconceito, de considerar que a pessoa com deficiência é menos válida, menos eficaz, que não é produtiva, que é um peso para a sociedade. A ideia do "nós estamos a pagar para os sustentar". Isto está enraizado na sociedade portuguesa.
E por outro lado, a resposta às questões da deficiência, dada a nossa tradição judaico-cristã, envereda muito pelos caminhos da caridade, do assistencialismo, da pena, que no fundo só acentua a exclusão destas pessoas.
Há alterações, começa a haver alguma consciência de que não é este o caminho que se deve seguir. Mas é um caminho que está a ser muito lento. Em 30 e tal anos avançámos muito pouco. Por exemplo, neste momento está-se a falar em Vida Independente, que é uma realidade nos EUA há 40 anos. Estamos 40 anos atrasados. Há oito anos, Portugal assinou a Convenção dos direitos das pessoas com deficiência. Se formos fazer uma checklist dos direitos que estão estabelecidos e que não são cumpridos, o saldo é muito mas mesmo muito negativo. E já passaram oito anos.
Desses direitos consagrados, quais são os mais flagrantes que ainda não estão estabelecidos?O direito à vida independente, é um deles. O direito a ter a subsistência assegurada, o direito à cultura, às cidades, a tudo aquilo que uma pessoa sem deficiência tem direito e que é vedado às pessoas com deficiência. E já passaram oito anos. Se formos ver, há legislação de 2004 que ainda falta cumprir. Temos, por exemplo, legislação onde se estabelecem quotas de emprego para pessoas com deficiência nas empresas privadas que nunca foi regulamentada. São dezenas de anos.
Claro que as coisas melhoraram, mas melhoraram muito pouco. Vemos apoios a nível económico que são dados às pessoas com deficiência, que não têm outra fonte de rendimento porque não podem trabalhar, que são à volta de 200 euros. Como é que com 200 euros por mês uma pessoa pode ser independente? Fazer uma vida semelhante à de uma pessoa sem deficiência? Sabendo-se que esta pessoa não tem as mesmas oportunidades que as outras. Sabendo-se que têm custos acrescidos para puderem fazer a sua vida. Estes custos, segundo um estudo, vão de quatro mil euros a 25 mil euros anuais, de acordo com o tipo de deficiência e o grau de incapacidade. A desigualdade existe e é profunda. É preciso que se altere muita coisa.
A aplicação do Modelo de Apoio à Vida Independente - Assistência Pessoal e a Prestação Social Única, que este Governo vai proporcionar, não são já um bom avanço?Ainda não suficientes. Do ponto de vista da vida independente, aquilo de que estamos falar é de projetos-piloto que vão abarcar uma minoria das pessoas com deficiência. Nós apoiamos e, aliás, foi o Bloco de Esquerda que inscreveu no Orçamento de 2016 a necessidade de se fazerem estes projetos para termos uma boa lei. Porque se fizermos agora uma má lei, precisamos de mais 20 anos até conseguirmos alterá-la.
Não achamos que este modelo que vai ser implementado corresponda totalmente àquilo que seriam bons projetos-piloto. Não consideramos bons projetos aqueles que se fiquem pela metade, em que não se possa meter em prática os princípios básicos da vida independente. A vida independente é criar condições para que as pessoas possam eliminar barreiras que a sociedade lhe impõe. Implica que esse apoio pessoal seja prestado em todas as suas necessidades para que possa cumprir o seu projeto de vida livremente decidido como se não tivesse uma deficiência. ao limitarmos o apoio a 40 horas semanais, há um número enorme de pessoas (os tetraplégicos por exemplo) que nunca poderá decidir o seu projeto de vida livremente. Não podem dizer que querem sair de casa da família e viver sozinhos porque depois não têm o apoio suficiente. Houve um avanço a seguir às consultas públicas que foi introduzir a 10% [depois da realização desta entrevista, o Governo alterou este número para 30%] das pessoas o número de horas que verdadeiramente precisem. Um surdo, se calhar, cinco horas por semana com um intérprete chega. Mas um tetraplégico ou um doente neuromuscular precisa o dia inteiro e durante a noite. E tem esse direito, está-lhe consignado na convenção. E as questões da deficiência colocam-se cada vez mais a nível dos direitos humanos. São pessoas que são humanas e que têm direitos como as outras.
Mas, em todo o caso, é um grande avanço mudar-se de políticas assistencialistas e institucionalizadoras das pessoas com deficiência, políticas essas que se mantém.
As pessoas com deficiência foram as mais prejudicadas na tão famosa recuperação de rendimentos
Tem-se batido muito na questão da institucionalização. Ou melhor, da desinstitucionalização.Foi novamente aumentado aquilo que o Estado dá a uma instituição que interne uma pessoa com deficiência. Quando uma pessoa vai para um lar, o Estado comparticipa com 1004 euros, para cada pessoa, quando esse lar vai buscar até 90% do rendimento da pessoa. Isto é, no fundo, internar pessoas num ambiente que ela não controla, não controla o que come, a que horas se deita, não controla coisa nenhuma. Costumo dizer que não controla sequer o canal de televisão que quer ver. Perde totalmente o controlo da sua vida. E isto tem de acabar. Neste momento, as orientações que existem da União Europeia são de se iniciarem políticas de desinstitucionalização. Significa isso não apoiar mais a institucionalização de pessoas e, mais do que isso, começar a retirá-las das instituições, criando condições para que tenham a sua vida, na sua comunidade, com serviços de base comunitária e com apoio pessoal. Isso é o futuro e tem que ser esse o caminho.
Quando vemos que continua a não se falar de planos nacionais para a desinstitucionalização, não é um bom sinal. Por outro lado, há bons sinais, como os projetos de vida independente e como a prestão social única para a inclusão que já tem uma lógica diferente das prestações que existiam, mas que está com uma aplicação muito diferida no tempo. É uma aplicação faseada e só faz sentido com as fases todas implementadas. Só em 2019 é que o sistema fará sentido. A aplicação devia ser feita toda de uma vez, porque se não o sistema perde um pouco o sentido.
E se formos ver do ponto de vista de ganhos de qualidade de vida imediatas, as pessoas com deficiência foram as mais prejudicadas na tão famosa recuperação de rendimentos que este Governo promoveu, que é um facto que promoveu, mas as pessoas com deficiência foram as mais esquecidas.
O aumento que vai haver para quem recebia a pensão de invalidez e que vai passar a ser a prestação social única vai ter um aumento que não chega a 1,5%, isto ao fim de dois anos de Governo. Porque a componente base desta prestação só vai entrar em vigor no quarto trimestre deste ano. Houve dois anos de espera para haver um aumento, ao contrário do que aconteceu com as restantes pensões. Continua a haver algum esquecimento desta parte da população que não é tão pequena quanto isso.
No ativismo político dá a cara pelos D(e)ficientes indignados. Quais são as principais amarguras, queixas e dificuldades das pessoas com deficiência com as quais lida?São as dificuldades económicas, claramente. O acesso ao emprego. Conheço muita gente com qualificações, mestrados, doutoramentos, que não conseguem emprego. Mas existe também um problema que são as baixas qualificações. A escola inclusiva também não é propriamente uma escola muito inclusiva e é relativamente recente. Uma questão importante que já devia ter sido resolvida há anos que é o acesso aos produtos de apoio. Continua a existir uma enorme burocracia e continua a existir recusas de atribuição destes produtos, como cadeiras de rodas, adaptação de escadas, o quer que seja. Ou demoras de um ano, dois anos.
Mas acontece porquê?Sinceramente não sei. Já questionei o ministério, por escrito. Disseram que não havia dificuldades nenhumas. Mas o que é certo é que continua a haver relatos de pessoas a dizer que estão há um ano à espera de uma cadeira de rodas. Isto para um adulto é grave porque tem que andar com uma cadeira velha toda partida, mas para uma criança com paralisia cerebral, ao fim de ano, a cadeira já não lhe serve. As informações oficiais é de que está a correr bem mas as informações que as pessoas nos encaminham não vão no mesmo sentido. Pelo menos há pessoas a quem estes problemas não foram resolvidos.
Será para definir prioridades na atribuição dos produtos?O que a lei diz é que a atribuição é universal e absoluta. A necessidade de definir prioridades justificava-se se não houvesse dinheiro, mas dizem que há.
Estava à espera de ser eleito deputado em 2015?Nem pensar. A primeira reação que tive foi "nem pensar! Não tenho jeito nem apetência para ser deputado"
Foi apanhado de surpresa?[Risos] Completamente apanhado de surpresa. A Catarina telefonou-me a perguntar. A primeira reação que tive foi "nem pensar! Não tenho jeito nem apetência para ser deputado". E continuo a não ter apetência para as práticas parlamentares, para a retórica e essas coisas. Mas, a certa altura, falei com amigos e com ativistas da área da deficiência e cheguei à conclusão: "Vou aproveitar a campanha eleitoral para dizer qualquer coisa". E pensei que fosse só a campanha eleitoral. Não estava eu nem ninguém à espera, nem o próprio Bloco, que fossem eleitos cinco deputados em Lisboa.
Quando foi eleito, pensou logo nos problemas a nível de acessos que teria para entrar e circular no Parlamento?Já conhecia a Assembleia. Como ativista político já vinha cá para reuniões com grupos parlamentares. Já tinha andado aí às cavalitas para poder ir reunir. Isso foi um problema que se pôs logo no primeiro dia e que era necessário resolver.
E ficou tudo resolvido?Ainda há coisas por resolver. Ao fim deste tempo, o acesso ao edifício novo não está resolvido. Continua a ter um ressalto, é preciso ajuda para se entrar. O que é ridiculo, porque é um edifício novo. E há um espaço que eu não tenho acesso, que me dizem que é muito difícil tornar acessível, que é exatamente o posto médico. É paradoxal.
Teve bastante impacto porque não é todos os dias que um deputado se estatela no meio do chão. Mas do ponto de vista daquilo que me interessava comunicar, ficou completamente esquecidoO dia 7 de outubro do ano passado foi histórico. Pela primeira vez subiu ao púlpito no Parlamento.
Foi histórico do ponto de vista em que foi a primeira vez que uma pessoa com deficiência motora subiu ao púlpito. Do ponto de vista simbólico é realmente muito importante que as pessoas com deficiência possam ter acesso ao púlpito da Assembleia da República. A queda é um bocadinho aquelas coisas dos critérios jornalísticos. A notícia é quando o homem morde o cão porque a queda sobrepôs-se a tudo aquilo que eu disse. As notícias foram "ele caiu" O que é que ele disse? Não sei". Desse ponto de vista, teve bastante impacto porque não é todos os dias que um deputado se estatela no meio do chão. Mas do ponto de vista daquilo que me interessava comunicar, ficou completamente esquecido.
Considera a Geringonça a melhor que aconteceu ao país, a melhor alternativa depois de anos de austeridade?Sim. Acho que os portugueses neste momento já não tem dúvidas nenhumas. Claro que, como lhe disse, na área da deficiência, acho que a teoria está certa, o caminho poderá ser este mas estamos a avançar muito devagar para o atraso que havia nas políticas da área da deficiência. era tal o atraso que era preciso um investimento muito maior. Temos 15 milhões de euros para os projetos-piloto Vida Independente mas, ao mesmo tempo, temos 18 milhões para aumentar a produtividade do eucalipto.
O caminho é este, mas tem que ser mais decidido. Evitar tentações de perpetuar políticas assistencialistas porque há um lobby a quem lhe interessa estas políticas, porque é um negócio também. É necessário uma estratégia para a deficiência que não existe, que foi exigido pelo Comitê dos direitos das pessoas com deficiência, e que já deveria ter sido apresentado.
Ainda assim, considera que a secretária de Estado Ana Sofia Antunes está a fazer um bom trabalho?Está a tentar fazer políticas novas, mas com este handicap que é, num Governo como um todo, deveria haver mais decisão. O Governo devia olhar para este setor que necessitava de um investimento estratégico e mais acentuado porque o atraso era enorme. Partimos de condições, não diria pré históricas, mas... Temos uma série de planos em que o que o foi cumprido é muito pouco.
Na acessibilidade, tivemos uma lei em 97 que prometeu a mim e a uma série de pessoas com deficiência motora que em 2004 as cidades estavam completamente adaptadas, que eu podia ir a todos os serviços públicos, que eu podia entrar em todos os espaços privados de uso público. Chegámos a setembro de 2004 e isto não se concretizou. Foi preciso chegar até 2006 em que sai uma nova lei que faz a amnistia de todos aqueles que não cumpriram a lei de 97. Toda a gente que cometeu o crime de não cumprir a lei foi amnistiada. O próprio Estado se amnistiou porque não adaptou as cidades. Em 2006 fez-se nova promessa, que em fevereiro de 2017 estaria tudo adaptado.
Na cidade de Lisboa, se fosse pintar de negro tudo onde não posso ir, a cidade era muito negra
E já está?Continuamos a não ter as cidades acessíveis. Não vale a pena estarmos a fazer leis se depois não há dinheiro para as cumprir. Gastaram-se milhões de euros a fazer planos municipais de acessibilidade mas depois não há dineheiro para concretizar em obra os planos. A história da acessibilidade para mim é uma história de faz de conta. É um bocadinho como os 'Robertos' que aparecem a dizer "Agora é que é!", e depois vem outro 'Roberto' e dá-lhe uma cacetada. No fundo somos um conjunto de cidadãos que são menosprezados pelas políticas públicas.
Se você fosse a um restaurante e lhe dissessem que não podia lá estar porque tem olhos castanhos. Ou se chegasse a um hotel e lhe dissessem que não podia lá ficar porque usa uma saia azul. Isto verifica-se com as pessoas com deficiência. Para programar as minhas férias tenho um trabalhão porque não consigo encontrar sítios com acessibilidade. Na cidade de Lisboa, se fosse pintar de negro tudo onde não posso ir, a cidade era muito negra. As pessoas que não têm qualquer dificuldade de mobilidade não se apercebem disto porque não está lá pintado de negro.
Que sítios estão para si pintados de negro aqui em Lisboa?Já se está a fazer obra em Lisboa, finalmente. Começa a haver alguma acessibilidade. Mas, eu não ando pela cidade sem ser de carro. O desconforto e a insegurança é tal, subir passeios, descer passeios. Estou à espera que o plano se concretize para andar em Lisboa à vontade. Agora com as intervenções no Eixo Central já estão acessíveis. Uma questão que todas as pessoas com deficiência percebem: não posso arriscar ir a restaurantes novos. Vou aos que já sei que são acessíveis. Isto limita-me não só a minha vida, como as minhas experiências gastronómicas, da minha sociabilização. Quando falamos de cumprimento ou não cumprimento das leis, temos que pensar que isto afecta a vida das pessoas. Que continuam a existir pessoas fechadas em casa anos, não saem. Continuam a existir, não desapareceram. Estão fechadas durante anos em casa. Isto não é de uma sociedade que seja democrática e socialmente evoluída. Permitir que existam pessoas que não podem sair de casa e que estão condenadas à prisão, sem terem cometido nenhum crime, não é de uma sociedade evoluída.
É uma das dificuldades de ser deputado é que as áreas em que é preciso intervir para solucionar questões são todas: saúde, urbanismo, cultura, é transversal a tudo. A certa altura uma pessoa tem aquela sensação de impotência de não conseguir chegar a tudo.
Foram aprovados dois diplomas que eu meti sobre estacionamento. Vai passar a considerar-se contraordenação grave estacionar, com perda de pontos na carta, estacionar no lugar reservado aos deficientes. As pessoas com deficiência que são obrigadas a ir de automóvel para o hospital ainda têm que pagar estacionamento? À partida vai passar a ser gratuito o estacionamento para pessoas com deficiência. Isto são tudo coisas relativamente fáceis mas é preciso uma pessoa lembrar-se, trabalhar, ver que legislação já existe, e depois fazer uma proposta de alteração. Depois vai a votação, depois desce para a comissão, depois é discutido, depois vai a votação final no plenário. Uma coisa destas, tão simples, demora meses. Essa parte é um bocado frustrante da vida de deputado.
Mudando aqui a agulha, relativamente às autárquicas. Como é que tem acompanhado esta campanha? Começava por perguntar-lhe sobre o candidato do Bloco de Esquerda a Lisboa.Considero-o um bom candidato, é competente, tem propostas. Há neste momento uma questão que me preocupa e que o Robles também levanta, a gentrificação dos bairros históricos, esta turistificação da cidade que e está a descaraterizar. O que pode acontecer é, a certa altura, os turistas repararem que Lisboa está igual a todo sítio e decidam visitar lugares mais típicos. Por outro lado, a expulsão de moradores. Já expulsámos tanta gente de Lisboa. As cidades vivem da concentração de pessoas, não podem viver sem pessoas. Ao substituirmos aqueles que cá vivem por populações flutuantes podemos chegar a uma altura em que temos uma cidade que é um cenário e que se fica pelo cenário. Preocupa-me que a cidade possa evoluir desta maneira e que tenhamos turistas de despedidas de solteiro a vomitar na rua. Não é agradável. Esta gestão camarária não está a saber lidar com este problema. Claro, é uma fonte de receita importante, mas é preciso controlá-la se não mata-se a galinha e deixa de haver ovos de ouro.
Uma pessoa dizer que quando vai ver os pobrezinhos se veste de determinada maneira para não chocar é de uma arrogância de classe que a senhora devia disfarçar.
Sobre a candidata do CDS, o que lhe apraz dizer sobre a estratégia das visitas aos bairros sociais, das calças de ganga, das botas e da saia larga?
Acho piada ver a Assunção Cristas, que teve um papel importante na lei das rendas, calçar as botas agora e ir com as suas jeans e de cabelo ao vento verificar que realmente as pessoas são despejadas e a polícia lá vai lá despejá-las. Pelos vistos não mede as consequências das políticas que incentivou quer ao nível dos arrendamentos quer ao nível da política austeritária que promoveram na altura da Troika que tem como consequência as pessoas não terem dinheiro para pagar a renda. Uma pessoa dizer que quando vai ver os pobrezinhos se veste de determinada maneira para não chocar – penso que era essa a intenção – é de uma arrogância de classe que a senhora devia disfarçar, pelo menos. Depois as 20 estações de metro, é ótimo. Aliás eu acho que até deviam ser 50 as estações. Uma em cada bairro. Realmente é muito fácil dizer. Fora aquelas broncas de aquele ser um plano que já existia a que ela tirou umas estações.
É o pior da política, a facilidade se faz uma coisa no poder e se prometem outras na oposição. É por coisas destas que depois as pessoas não acreditam nos políticos. Poderão ter alguma razão. Acho perigoso dizer-se que os políticos são todos iguais, é uma coisa um bocado fascistóide. Os políticos não são todos iguais. Não faço aquela divisão entre políticos bons à Esquerda e maus à Direita. Há políticos honestos em todos os quadrantes e há políticos desonestos. Se calhar, por deformação, acho que há mais políticos desonestos à Direita. A conversa de que os políticos são todos iguais é um bocado uma desculpa para as pessoas nem sequer se mexerem. É fácil dizer que não se acredita e ficar no sofá a ver aqueles concursos estúpidos ou no Facebook. Se não acreditam, mãos à obra, criem movimentos, protestem, venham para a rua, construam alternativas. A política é isso. A política não é só o Parlamento, é vida do dia a dia e lutarmos por aquilo que está correto e provocar mudanças. Deve ser triste passar pela vida, nascer, viver e morrer sem provocar nenhuma mudança. Se os políticos são todos iguais, tirem-nos de lá. Organizem-se.
Ao menos que votem...
No mínimo. O que tem piada é que depois votam sempre nos mesmos. Ou então optam pela abstenção que é realmente uma atitude que muda muita coisa. [risos].
No Porto, o divórcio de Rui Moreira e do Partido Socialista pode ser vantajoso para o candidato do Bloco, João Semedo?
João Semedo já era, quanto a mim, a alternativa socialista ao Porto. O Partido Socialista neste momento vai ter uma grande dificuldade. Não se pode numa semana dizer que o Moreira é um ótimo presidente de Câmara e no dia a seguir começar uma campanha eleitoral em que se está contra aquele com quem se esteve um mandato inteiro. Com um candidato que o Rui Moreira dizia que era um ótimo vereador. Temos dois irmãos que foram uma família feliz até determinada altura e depois existe uma separação e vão contradizer o que disseram anteriormente. Eu se fosse eleitor no Porto acharia isto tudo muito estranho. Só esta politiquice, aqui sim no mau sentido, me levaria a desconfiar de gente que trata as coisas assim. Têm um projeto comum e da noite para o dia deixam de ter não me daria muita confiança.
Antevê que muitos "desconfiados" vão voltar-se para a alternativa do Bloco?
Espero que sim. O João Semedo é super competente. Tem propostas para uma alternativa que é credível, que tem hipótese de ser eleito. Seria normal a consagração da Esquerda de João Semedo.
O humor é independente da deficiência. Dou grande importância ao sentido de humor. É sinal de que continuo a ser o mesmo
Escreveu no Facebook, a propósito do campeonato de futebol, "Só há festa para os tetra, e então os paraplégicos?". O humor é a melhor forma de lidar com a deficiência que tem?
O humor é independente da deficiência. Dou grande importância ao sentido de humor. Valorizo muito as pessoas que têm sentido de humor. Sou assim. Não sou uma pessoa que ande a mandar sempre bocas. Já me disseram que por ser deputado não devia andar a escrever algumas coisas. Mas porquê? Vou lá agora andar a reprimir-me. Porque é que hei-de ser uma pessoa diferente só porque estou aqui [no Parlamento]? Escrevo menos asneiras, isso sim, controlo-me um bocado para não chocar as pessoas. Houve alguém que me perguntou como é que era isto de estar junto do poder. Não sinto nada disso. Ainda me faz confusão quando me dizem “Boa tarde, senhor deputado!” Sempre fui ativista e fui militante partidário durante bastantes anos, neste momento não sou, mas faz-me confusão que as pessoas sejam diferentes porque conhecem mais gente, porque já dão apertos de mão ao primeiro-ministro, que isso faça delas pessoas diferentes daquilo que são. O sentido de humor é um sinal que eu continuo a ser o mesmo. Não me coíbo de ser a mesma pessoa. E acho que assim é que deve ser. Fazer um teatro de deputado não conseguia. Fiz teatro durante algum tempo, podia vir para aqui de fato e de gravata e encarnar um personagem que não era eu e que deveria dar um trabalhão.
Chegou aqui de uma forma inesperada. Mas gostava de continuar a ser deputado, ainda que não seja o seu 'habitat natural'?
Não sei. Já estou com 63 anos. Era uma experiência que gostaria de ter tido mais cedo, numa altura em que tinha mais força e genica. Canso-me muito fisicamente. Não faço a mínima ideia se me apetece ou não. Estou a meio de uma legislatura e logo se verá. É daquelas coisas que não me ocupa o espírito. O cansaço pode levar-me a pensar duas vezes na reforma [risos].
Fonte: Noticias ao Minuto