3 anos, 10 meses e 21 dias depois voltei á liberdade. Chegou no dia 21 de maio último. Não estava nos meus planos cumprir uma pena tão longa. Sinceramente sempre pensei que a minha ida para um lar fosse provisória, passageira, e nunca esta agonia que parecia não ter fim. Pela 1ª vez em Portugal um Governo composto por uma Secretária de Estado com deficiência, e um deputado na mesma condição na oposição, ambos conhecedores da nossa realidade, ajudou-me a pensar assim.
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Rafaela, Fernanda e Patricia as minhas assistentes pessoais. |
Enganei-me redondamente.
A pena prolongou-se por quase 4 anos. Nem o facto destas respostas sociais se destinarem somente a pessoas idosas com mais de 65 anos, o que não é o meu caso, a Constituição da República Portuguesa que no seu artigo nº 71 consagra os mesmos direitos a todos os cidadãos: “Os cidadãos portadores de deficiência física ou mental gozam plenamente dos direitos e estão sujeitos aos deveres consignados na Constituição (...).” E nem a Declaração Universal dos Direitos do Homem da ONU que no seu artigo nº 1 declara que “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos”, assim como a Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência, subscrita por Portugal em 2009 onde o nosso Governo se comprometeu a promover, proteger e garantir condições de vida dignas às pessoas com deficiência, assumindo a responsabilidade pela adoção das medidas necessárias para nos garantir o pleno reconhecimento e o exercício dos nossos direitos, e também a promessa de desenvolver esforços para a implementação da Estratégia da União Europeia para a deficiência 2010-2020 e da Estratégia para a Deficiência (2017-2023), do Conselho da Europa, as várias ações de protesto que realizei pelo direito à Vida Independente, como por exemplo a viagem de 3 dias em cadeira de rodas, as greves de fome, e outras, me valeram.
A sentença estava tomada e tive de a aceitar.
O tempo passava e eu continuava preso sem solução à vista. Finalmente o meu dia 25 de abril chegou. Aconteceu no dia 21 de maio. A liberdade chegou, mas a mágoa e tristeza não me vão deixar. Será impossível apagar da minha memória tamanha maldade e humilhação. Até porque nada fiz para merecer tal punição. Não aceito que a minha deficiência seja a culpada pela pena aplicada. Não consta no código civil que assim seja. Assim como também não reconheço nos nossos governantes competência para se substituírem a um juiz e resolverem tomar decisões sobre a minha vida.
Mas aconteceu. Pelo facto de adquirir uma deficiência, e não ter ninguém para me apoiar, o Estado decidiu que deveria abandonar o meu lar e local que escolhi para viver. Como se isso não bastasse a minha pena foi agravada. Também fui condenado a pagar 90% dos meus rendimentos por cada mês de prisão.
Não me rendi. Lutei todos os dias contra tal injustiça. Enfrentei poderes. Mostrei-lhes a minha indignação. As respostas não surgiam, mas desistir nunca foi opção e eis que quase 4 anos depois o Estado/tribunal, decide atenuar a pena e transforma a prisão efetiva em liberdade provisória durante 34 meses. Ainda pensei se valia a pena aceitar tal migalha, mas para quem sempre teve tão pouco, liberdade provisória é melhor do que nada.
As mazelas nunca me abandonarão.
Conviver com pessoas no fim da linha e em sofrimento constante deixa as suas marcas. Um lar de idosos como está concedido no nosso país a sua única e exclusiva função é um depósito de “velhos”. Chegam no fim da linha, derrotados e a aguardar a morte. É impossível um lar oferecer dignidade com os 384,00 mensais que a Segurança Social atribui por cada utente. Por mais que as direções, técnicos e colaboradoras e colaboradores possam fazer, que é o caso do lar do Centro de Apoio Social da Carregueira, onde me encontrava, e onde todos davam o seu melhor, nunca será o suficiente para oferecer a todos os seus utentes a qualidade de vida que merecem e têm direito.
Repensar lares. Veja o que escrevi tempos atrás sobre este assunto:
(Ser ajudante num lar de idosos e o desrespeito da Segurança Social)
Neste momento os lares são autênticos hospitais de retaguarda, mas com direito a muito menos meios em comparação com os hospitais. Basta referir que o Centro de Reabilitação de ALcoitão cobra ao Estado por cada dia que lá sou internado aproximadamente 500€, mas ao lar onde me encontrava o Estado oferece 383,16€ mensais. A mim, para ficar na minha casa, oferece-me entre 94,64€ e 105,16€ mensais para contratar assistentes durante 24 horas por dia. Aos lares residenciais oferece mensalmente 1.027,03€ e porque somente 383,16€ aos lares de idosos?
Convive-se com a degradação humana, sofrimento, falta de esperança e abandono. E estou a referir-me ao melhor lar que conheci. Como é possível o Estado somente ter este sofrimento para oferecer a quem trabalha desde criança e tanto lhe deu? Estas pessoas merecem outro tratamento e dignidade. Há que repensar este tipo de respostas o mais rápido possível e envergonharmo-nos da maneira que tratamos os nossos “velhos”.
Projeto piloto Vida Independente
Sou um dos beneficiários do projeto piloto de Vida Independente instituído pelo Decreto Lei nº 129/2017 de 9 de outubro. Inscrevi-me no Centro de Apoio à Vida Independente (CAVI) de Leiria, pertencente á minha NUT e após avaliação foram-me atribuídas 16 horas diárias de assistência pessoal. O ideal seriam 24 horas, mas as 16 horas permitem-me continuar a trabalhar e viver na minha casa, e neste momento é o que me interessa.
Embora tenha somente apoio durante 16 horas, o que faz com que passe a maioria das noites sozinho, e o projeto tenha a duração de somente 34 meses, esta sensação de liberdade infinita está a fazer-me voltar a renascer. Não há palavras para descrever o alívio que sinto por ter a minha vida de novo nas minhas mãos. Sou mais uma vez o dono de mim. Decido quando me quero levantar, deitar, quando e quantos banhos tomar, o que comer, e onde ir, etc. Agora tenho a Rafaela, Patrícia e Fernanda, minhas assistentes pessoais, sempre disponíveis e prontas para substituir os meus braços e as minhas mãos e a serem recompensadas financeiramente por isso. Já não me sinto um peso, a viver de favores.
Pena que este projeto tenha as limitações que tem e não permita a mais pessoas sentirem o mesmo que eu. Na região de Lisboa nem sequer iniciou. Desde dezembro que é prometido o seu início pela Secretária de Estado para a Inclusão das Pessoas com deficiência, Ana Sofia Antunes e até ao momento nada aconteceu. Além disso o que acontecerá quando terminar o projeto piloto? Será que o legislador irá transformá-lo em lei e tornar a Vida Independente uma realidade, ou não passará de um pequeno doce dado mais uma vez às pessoas com deficiência? Questões que me invadem e que não consigo alhear-me. Vão voltar a acusar-me do mesmo crime e aplicar-me mais uma vez a pena, que será aprisionarem-me mais uma vez num lar de idosos?
Uma certeza tenho, se o pior voltar a acontecer, cá estarei para voltar ao palco de batalha e lutar com todas as minhas forças contra essa injustiça como sempre o fiz. Se vou sair derrotado mais uma vez, ou sair vencedor, veremos na altura. Agora quero ver se consigo desfrutar da liberdade que me foi concedida. Ela é boa demais para ser desperdiçada, pois como refere a dos direitos humanos da ONU, todo os seres humanos nascem livres e iguais em direitos e dignidade.
Obrigado Centro de Apoio Social da Carregueira
Por último um agradecimento muito especial para o Centro de Apoio Social da Carregueira, local que me acolheu de braços abertos e deu tudo que tinha. À sua direção, colegas utentes e colegas de trabalho, a minha eterna gratidão. Lá renasci como trabalhador e recuperei a minha autoestima. E é tão bom no final do dia ao terminar meu horário de trabalho saber que venho para a minha casa e não para o quarto nº 36. Era muito doloroso ver meus colegas de trabalho chegarem e partirem, e a minha única alternativa era o quarto.
Jornal Público
A minha ida para o lar foi documentada pelo jornal Público, através do documentário em video, “”O que é isso de vida independente”. A minha saída também foi registada e acaba de ser publicada mais uma vez pelo mesmo jornal. Ambos os trabalhos são da autoria da jornalista Vera Moutinho.
Vejam e revejam:
Eduardo Jorge, tetraplégico, dá a cara pelo direito à vida independente — organizou uma marcha de 180 quilómetros em cadeira de rodas, dormiu ao relento e fez greves de fome.
Há quatro anos, o PÚBLICO acompanhou o seu dia-a-dia e o momento em que se viu obrigado a ir viver para um lar por não conseguir pagar a um cuidador.
Também em grande entrevista na edição em papel de ontem, dia 17, reproduzida abaixo.