sábado, 1 de abril de 2017

Acabamos com paradigma de só se ter apoio social quando não se trabalha

Admite ter uma sensibilidade "especial" para carregar a pasta da Inclusão, mas não é isso que lhe concede o "dom da verdade". Como tal, tenta sempre colocar-se "na pele" daqueles que têm deficiências diferentes da sua. É que, apesar de existirem problemas transversais a todos os deficientes, há realidades muito particulares, algumas "muito duras".

Em entrevista ao Vozes ao Minuto, Ana Sofia Antunes está esperançosa de que a nova prestação social de apoio aos deficientes venha diminuir a pobreza e ser um "impulso" na vida daqueles que, muitas vezes, "são colocados de parte". Uma medida que numa primeira fase, abarcará 120 mil cidadãos e que, em 2018, chegará a 175 mil beneficiários.

O sistema de apoios sociais aos deficientes vai mudar já a partir deste ano. Na prática, como vai funcionar o novo modelo?

Estamos a falar de duas medidas [Prestação Social para a Inclusão e o Modelo de Apoio à Vida Independente] cuja consulta pública acabou na sexta-feira [dia em que foi realizada esta entrevista]. São duas medidas distintas.

A primeira delas é a reformulação ao nível das prestações sociais com a criação de uma nova prestação social para a inclusão, que procura substituir, simplificar e melhorar a proteção social das pessoas com deficiência. No fundo, vem substituir algumas das atuais prestações e reunir tudo numa, para facilitar a vida às pessoas e tornar o sistema mais transparente.

Quando é que será implementada a prestação e quem terá direito a ela?

Terá uma aplicação faseada. Serão três fases de implementação. A primeira para vigorar ainda este ano, em outubro.

A primeira delas é a componente base e que constitui uma medida de compensação dos custos inerentes à própria deficiência. Aquilo que vamos fazer, para já, é atribuir às pessoas um determinado valor base que rondará os 264 euros e ao qual terão acesso pessoas com incapacidade igual ou superior a 60% e com idade entre os 18 anos e a idade de reforma, desde que tenham a incapacidade atestada pelo menos até aos 55 anos.

Nova prestação social para a inclusão vem substituir algumas das atuais prestações e reunir tudo numa, para facilitar a vida às pessoas e tornar o sistema mais transparenteEstamos a falar de um duplo patamar de proteção, um mais generoso e que constitui a vertente de cidadania da prestação que é, digamos, um patamar que determina que todas as pessoas com um grau de incapacidade mais restrito, igual ou superior a 80%, tenham acesso direto à prestação, pelo simples facto de terem esse grau de incapacidade elevado.

Neste caso, independentemente do rendimento, é isso?

Sim. Para essas pessoas não vamos pedir comprovação de custos nem de rendimentos. A pessoa tem acesso direto [aos 264 euros] bastando para isso ter o atestado.

Depois, há um patamar intermédio, digamos menos generoso, a que poderão ter acesso pessoas com incapacidade entre 60 e os 79%. Mas aqui, além da comprovação do grau de incapacidade, vamos requerer comprovativo de rendimento da própria pessoa. Podem aceder pessoas que tenham um rendimento de trabalho até um limiar anual de 8.500 euros e pessoas que tenham outro tipo de rendimentos (apoios sociais) num limiar até aos 5.059 euros. Esta é a regra base. Depois teremos duas outras fases de implementação.

A segunda fase, chegará em 2018, tem a ver com a entrada do complemento. Tem mais a ver com a componente social da prestação e permite que as pessoas que tenham o complemento base acedam a um montante superior que as colocará acima do limiar de pobreza. Além de terem de apresentar o grau de incapacidade, terão de apresentar comprovativos do rendimento do agregado familiar (o próprio, o cônjuge se o tiver, e no caso de viver com os pais e irmãos). Aplicar-se-á uma forma de cálculo algo próxima da do Complemento Solidário para Idosos (CSI), em que procurámos introduzir algumas majorações, algumas modificações, de forma a que este complemento seja um pouco mais generoso.

Os elementos do agregado com deficiência terão uma majoração no seu peso na fórmula, valem mais, e os rendimentos da pessoa com deficiência, a existirem, não serão considerados na sua totalidade, assim como o valor da componente base não será considerado como rendimento do agregado.

A terceira fase, já para 2019, é a chamada majoração. Esta é uma vertente diferente da prestação, não se consubstancia numa transferência mensal, mas sim numa forma de compensação pontual de custos extraordinários que a pessoa possa enfrentar em determinados períodos da vida, relativos nomeadamente a reabilitação, em que o que propomos é que a pessoa obtenha mediante comprovativo de despesa alguma comparticipação de algumas despesas.

O que é o Governo procura alcançar com este novo sistema de apoios?

Simplificar a vasta panóplia de prestações que temos atualmente. Temos pelo menos oito prestações diferentes para as pessoas com deficiência, em diferentes contextos. A pessoa passa a ter um cenário mais transparente, a partir do momento em que se identifica junto da Segurança Social ela é vitalícia. Acompanha e vai-se adaptando às diferentes fases da vida da pessoa.

Acabamos com esse paradigma que vigorou até hoje de a pessoa só ter direito a apoio social quando não trabalhaNa terceira fase, em 2019, contamos estender a prestação a crianças também, reduzir a idade abaixo dos 18 anos. As prestações relativas à dependência como o complemento por dependência ou o subsídio por assistência a terceira pessoa [subsídio de quem cuida de pessoas com deficiência] continuarão a estar à parte. Serão acumuladas com essa prestação. E para esta componente base não contaremos com outro tipo de prestações.

Na prática estes apoios vêm substituir que subsídios?

O subsídio mensal vitalício e o subsídio de invalidez. Quem já os recebe, transitará automaticamente para a nova prestação. Progressivamente, substituirá a bonificação por deficiência, mas não será um processo para já, uma vez que essa transição é mais gradual. Substituir de todo, substitui estas duas.

Que lacunas vem preencher?

Um conjunto delas. Por um lado, a questão da complexidade do sistema. Por outro, tenta combater a pobreza junto das pessoas com deficiência que ainda é muito acentuada. E por isso propomos que essas pessoas passem a receber um rendimento que possa chegar aos 423 euros.

Mas o que traz de novo em relação ao que já existe?

Esta prestação introduz uma grande inovação que não existe em nenhuma outra prestação até agora na nossa Segurança Social que é a vertente de cidadania para as pessoas com incapacidade igual ou superior a 80%. Significa que qualquer pessoa, sem necessidade de condição de recursos, sem que lhe seja perguntado quanto ganha, tenha o reconhecimento de que o simples facto de que a deficiência tão elevada lhe traz custos acrescidos.

É também uma forma de tentar estimular, sempre que possível, a pessoa a não se acomodarDepois, o facto de a prestação poder ser acumulada com rendimentos de trabalho e outros até determinado limiar. O que no fundo, para nós é também uma forma de tentar estimular, sempre que possível, a pessoa a não se acomodar e a tentar procurar trabalho, independentemente dos apoios do Estado.

Acabamos com esse paradigma que vigorou até hoje de a pessoa só ter direito a apoio social quando não trabalha, enquanto se considera que a pessoa é inválida. Porque a partir do momento em que a pessoa começa a trabalhar são-lhe cortados os apoios sociais, e isso também acabava por desincentivar as pessoas a aceitarem propostas de trabalho porque receavam o que é que podia vir a seguir e porque perdiam de imediato a prestação.

E, receando uma situação laboral que no início pode ser incerta e em caso de desemprego em alguns meses, temiam não recuperar a prestação e ficar numa situação complicada. Tentamos combater isso com este modelo que desenhámos.

O desemprego é um dos grandes problemas e uma grande barreira das pessoas com deficiência, além de todos os outros óbvios que se prendem com a saúde.

É um público algo sensível por uma razão simples. O acesso ao emprego nalgumas situações é de todo impossível. E noutros casos, não sendo impossível, tendo a pessoa capacidade para o trabalho e racionalidade para o exercer, em contextos em que existe alguma dificuldade e escassez de emprego, este é sempre um público que fica de parte. Mais dificilmente acede ao emprego. Felizmente, essa é uma realidade que vamos recuperando progressivamente.

Mas, de facto, passou-se um período muito complicado em que a taxa de emprego das pessoas com deficiência foi seriamente afetada. Para termos noção, enquanto na população comum falamos de uma taxa de empregabilidade de cerca de 66%, ao nível das pessoas com deficiência temos uma taxa de empregabilidade de 44%. Os números falam por si. Ainda existem reticências e algum receio em contratar e dar uma oportunidade a estas pessoas. Isso, naturalmente, reflete-se depois nos seus rendimentos, e os apoios sociais, por vezes, não conseguem compensar.

Com esta nova prestação ninguém vai ficar a receber menos do que recebe agora?

Não. Isso é uma condição de regra da prestação. Ninguém pode ficar pior do que o que está.

Que balanço faz das sessões de esclarecimento que terminaram na sexta-feira?

Estivemos em Lisboa, Porto e Coimbra. Foi uma das vertentes da consulta pública, já tínhamos constituído umas caixas de correio onde as pessoas contribuíram com sugestões, recebemos um total de 312 contributos que estão agora a começar a ser analisados para vermos como é que conseguimos ajustar o desenho das medidas para irem mais ao encontro das necessidades das pessoas. Esses 312 contributos não são apenas sobre a prestação mas também sobre o Modelo de Apoio à Vida Independente. Foram sessões muito participadas. E, no fundo, isto demonstra que esta é uma área onde as pessoas têm, de facto, necessidade de mais apoio, de serem ouvidas, e onde têm uma palavra a dizer.

Fazendo uma retrospetiva do último ano, houve algum partido que se tenha destacado mais a contribuir com propostas para a inclusão das pessoas com deficiência?

Vivemos num sistema democrático e todas as propostas são sempre bem-vindas, nós recebêmo-las e tentamos adaptar as nossas propostas com as de todas as vertentes políticas, obviamente quando elas vão no sentido que é a nossa visão. Há áreas em que isso é possível, outras em que não.

Com a oposição, há situações que são melindrosas e que nos deixam um pouco perplexosComo é que tem corrido a articulação quer com os partidos quer de Esquerda quer de a Direita neste âmbito?

Temos conseguido desenvolver um trabalho muito frutífero especialmente com os nossos parceiros de acordo na Assembleia da República. Tem sido vantajoso de facto. [Com a oposição] há situações que são melindrosas e que nos deixam um pouco perplexos.

E eu, também como pessoa com deficiência, não posso deixar de ficar admirada com algumas coisas. Custa-me ver determinados setores da nossa vida política a proporem medidas, por vezes muito ambiciosas na área da deficiência - com algumas delas até poderei concordar, com outras não, por orientação política e por ter a minha própria visão sobre as coisas, - agora, quando durante vários anos foram governo e nada se fez fez em prol destas pessoas... e nenhuma proposta apresentaram para melhorar as condições de vida destas pessoas. Isso de facto não pode deixar de me admirar.

Pode concretizar?

O CDS avançou com 19 medidas, algumas delas bastante ambiciosas. Não tenho nenhum tipo de problema em aceitar uma proposta que venha da Esquerda ou da Direita que faça sentido e que possa ser negociada e que seja realmente do interesse das pessoas com deficiência.

Acho estranho que um partido que nada fez durante quatro anos em prol das pessoas com deficiência venha agora apresentar tantas medidasNão tenho o dom da verdade. Aceito propostas que possam vir de todo o lado que tenham coerência, mas tenho de reconhecer e dizer que acho estranho que um partido, que ainda por cima foi responsável pelo ministério onde me insiro agora e que nada fez durante quatro anos em prol das pessoas com deficiência, venha agora apresentar tantas medidas e tenha tantas ideias para promover a inclusão das pessoas com deficiência. Acho estranho.

Considera então que a inclusão das pessoas com deficiência foi, digamos, desconsiderada no governo anterior?

A minha pasta foi extinta durante o governo anterior. Não vou dizer que as questões da inclusão desapareceram, estavam incluídas na pasta da Segurança Social, mas isso para mim, à partida, é um erro, porque quando não se tenta dar alguma prioridade a estas temáticas elas ficam escondidas dentro de muitas outras prioridades. Gostava que me apontassem uma medida estratégica tomada pelo PSD/CDS durante o período de 2011-2015.

Os anos em que em tudo se cortou...

Eu sei que muito se fala e muito se diz sobre o período em concreto de crise que tivemos, e eu reconheço que tínhamos limitações, mas os mais frágeis não têm de ser aqueles que têm de pagar a fatura das grandes crises. Penso que dentro dos grandes cortes que foram feitos durante o período de austeridade que vigorou poderia ter havido alguma atenção especial para os públicos mais sensíveis.

O PAN apresentou na sexta-feira uma proposta para que haja intérpretes de língua gestual nos serviços públicos, dando o exemplo crasso da área da saúde, questionando como é que um surdo consegue explicar ao médico como se está a sentir. Ainda há muito por fazer nesta área para conseguirmos afirmar que somos uma sociedade igualitária no acesso a serviços públicos?

Reconheço que as pessoas surdas, de facto, têm ainda muitas razões de queixa. A sua grande limitação é a comunicação. Elas precisam sobretudo disso, que se lhes garantida a possibilidade de comunicar. Nós vimos hoje a língua gestual portuguesa presente em muitos contextos que não existiam há uns anos.

Os mais frágeis não têm de ser aqueles que têm de pagar a fatura das grandes crisesMas é preciso fazer mais. Temos procurado desenvolver um projeto de intérpretes de língua gestual portuguesa para a linha de emergência médica (INEM), e queremos, em simultâneo, estender este serviço transversalmente aos diferentes serviços públicos do Estado. É algo que penso ter feito até ao final deste mandato.

Para terminar. Sendo a primeira secretária de Estado cega, a sua condição dá-lhe uma sensibilidade diferente para tratar destes temas?

Acho que sim. Reconheço que algumas das questões me afetam ou afetaram a mim. Isso não deixa de me dar uma sensibilidade própria especial. Não sei tudo. Obviamente que sou uma pessoa com uma determinada deficiência, no caso visual, e há questões que se colocam que são transversais, mas há outras que são muito específicas e tenho tentado procurado aprender o máximo para representar dignamente todas as pessoas com deficiência. Pôr-me na pele de todas elas, tenham a deficiência que tiverem.

E a realidade surpreendeu-a?

Surpreende-me todos os dias mas já há muitos anos. A realidade que conheço não é de agora, é de há muitos anos. De facto, há realidades muito duras e são estas que estamos a tentar progressivamente melhorar. Creio que com estas medidas podem melhorar. Não vão resolver tudo, nunca se resolve tudo, mas podem dar um impulso muito importante.

Fonte: Noticias ao Minuto

Sem comentários:

Enviar um comentário