Finalmente, um ano e quatro meses depois de ter sido enviado à tutela, o relatório da Comissão Especializada para reavaliar as doenças suscetíveis de serem abrangidas pelo regime especial de proteção na invalidez foi entregue ao Bloco de Esquerda pelo atual Ministério do Trabalho e Segurança Social. Até agora, o conteúdo deste documento era desconhecido, bem como os nomes dos “especialistas” que o subscreveram. Os pedidos do grupo parlamentar do Bloco para conhecer o documento, foram sempre ignorados pelo governo anterior.
Foi este relatório que forneceu os argumentos ao governo PSD-CDS para justificar a alteração da Lei 90/2009, que estabelece o regime especial de proteção na invalidez, através de um decreto-lei aprovado em Conselho de Ministros que extinguia a lista de doenças suscetíveis de proteção especial e estabelecia como condição de acesso ao regime especial que o requerente se encontrasse incapacitado para o trabalho e fosse portador de uma doença que clinicamente se previsse evoluir “para uma situação de dependência ou morte num período de três anos”.
Promulgado no último dia da vigência do governo Passos Coelho, o decreto-lei 246/2015, que determinou estas alterações, provocou protestos generalizados por parte das associações de doentes, de médicos e da respetiva Ordem, que denunciaram as novas condições por serem inaplicáveis, além de mostrarem uma extraordinária crueldade em relação a pessoas em sofrimento. “Nenhum médico vai dizer que é previsível que um doente vai morrer num prazo de três anos”, afirmou o presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar, Rui Nogueira.
“Especialista” em rejeitar pedidos de reforma
A divulgação do relatório permite agora, em primeiro lugar, saber quem são os dez signatários e qual a sua autoridade, conhecimentos e experiência para propor ao governo alterações que implicam em consequências tão drásticas para pessoas fragilizadas por doenças incapacitantes. Esperava-se que alguns deles pelo menos fossem especialistas em doenças crónicas, mas não é isso que acontece. Há apenas quatro médicos entre os dez, sendo os restantes juristas, diretores ou funcionários da Caixa Geral de Aposentações, da Direção-Geral de Saúde, do Instituto de Segurança Social, da Direção-Geral da Administração e do Emprego Público e do Instituto Nacional para a Reabilitação. Um dos médicos é também da CGA, onde ocupa o cargo de Médico-Chefe do Núcleo Médico daquela instituição. Trata-se de M. M. Camilo Sequeira, que se notabilizou em 2007 por rejeitar os recursos que lhe foram apresentados por pacientes que viram negado o seu pedido de reforma por invalidez pelas Juntas Médicas.
Os casos ganharam foros de escândalo nacional devido à gravidade da doença e à insensibilidade das decisões. Camilo Sequeira disse não ter “qualquer dúvida” em confirmar a negativa da Junta Médica de aposentar um professor de Filosofia que tinha cancro na laringe e estava afónico, afirmando que o docente, que morreria pouco depois, “não estava totalmente incapacitado para trabalhar”. Outro caso tristemente célebre foi o de uma funcionária pública de 57 anos que teve cancro nos intestinos e que depois de uma cirurgia de urgência seguida de quimio e radioterapia viu rejeitado o seu pedido de aposentação. Diante do recurso apresentado pelo médico oncologista, que alegava que a sua paciente sofria de "síndrome de fadiga crónica" e "urgência fecal com episódios de incontinência”, que lhe limitavam muito a autonomia e qualidade de vida, Camilo Sequeira invocou a "interpretação jurídica da lei" para fundamentar o parecer negativo: "cancro em remissão não é critério de aposentação", afirmava no seu despacho de quatro linhas. Só naquele ano, pelo menos onze casos igualmente escandalosos envolvendo a CGA foram tornados públicos.
Os outros médicos são Rizério Salgado, médico de família na Unidade de Saúde Familiar São Julião de Oeiras e que foi vice-presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar, e José Alexandre Diniz, médico generalista que ocupou vários cargos de diretor de serviços e de departamento na Direção-Geral de Saúde e Maria Conceição Gonçalves Barbosa.
SIDA e doenças oncológicas desvalorizadas
Havia alguma expectativa de que a fórmula de prognóstico de dependência ou morte em três anos tivesse sido criada pelo governo e não estivesse no relatório. Afinal de contas, como disse o presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar, Rui Nogueira, "o que está em causa é a invalidez, não é a dependência ou morte", adiantando que uma pessoa pode não estar dependente, mas estar inválida para o trabalho. Ora nenhum médico “vai dizer que é previsível que um doente vai morrer no prazo de três anos". E o bastonário da Ordem dos Médicos insistiu: “não é terminologia médica”.
Mas a condição está mesmo no relatório, com uma redação muito semelhante à que acabou por se tornar no artigo mais importante do decreto-lei do governo PSDS-CDS.
O relatório parte, desde o início, da premissa que “a discriminação positiva de um conjunto de beneficiários” pelo facto de serem portadores de uma doença invalidante “fere o princípio da equidade legalmente previsto”. E adianta dois exemplos:
“O HIV/SIDA à data da sua inclusão nas doenças com proteção especial era rapidamente incapacitante e de mau prognóstico. A evolução dos cuidados médicos rapidamente esvaziou essa carga permitindo que seja atualmente uma doença crónica raramente incapacitante” pode-se ler no relatório, indiciando assim que os autores do documento consideram que a SIDA não deveria receber proteção especial. O mesmo para o cancro: “Também a doença oncológica, embora venha a ser previsivelmente a primeira causa de morte, é hoje, num número crescente de casos, uma doença crónica com períodos de remissão completa por muitíssimos anos”.
Sendo assim, os signatários concluem que não faz sentido a existência de uma lista de doenças objeto de proteção especial na invalidez”.
Sem conhecer este relatório, e referindo-se apenas ao decreto-lei do governo PSD-CDS, Carlos Oliveira, secretário-geral da Liga Portuguesa Contra o Cancro e médico oncologista, disse que ele foi feito por quem “nunca esteve em contacto com doentes de cancro desconhecendo, por isso a sua realidade”, já que “nos doentes oncológicos, a avaliação não pode ser feita com limites temporais tão estritos e com a obrigação de, a partir de uma incapacidade total, fazer uma previsão de morte em tão curto espaço de tempo”. Para ele, o objetivo do decreto era apenas “cortar nas pensões de invalidez”.
Lista de doenças e "novo paradigma"
Refira-se como curiosidade que a comissão chegou a elaborar uma lista alternativa de 21 grupos de doenças, para depois concluírem “não ser possível, com rigor e fiabilidade, elaborar uma lista desta natureza”.
O relatório propõe assim, em alternativa à lista, um novo paradigma, “a observância de uma condição que engloba um conjunto de requisitos a reunir cumulativamente, independentemente da doença de que se é portador”. A condição proposta é: “situação de incapacidade permanente para o trabalho desempenhado, verificada pela entidade competente em idade ativa, não compensável através de produtos de apoio ou de adaptação ao/ou do posto de trabalho, decorrente de doença de causa não profissional ou responsabilidade de terceiros, que clinicamente se preveja evoluir para uma situação de dependência ou morte num período de três anos”.
Em nenhuma parte do relatório se justifica o porquê do prazo de três anos, e porque não dois, ou quatro, nem como esse prognóstico pode ser feito por um clínico sem ferir o próprio Código Deontológico da Ordem dos Médicos.
As principais alterações do decreto-lei 246/2015 foram anuladas por uma apreciação parlamentar requerida pelo Bloco de Esquerda, que aprovou o decreto da Assembleia da República 11/XII/1ª, com os votos favoráveis do PS, Bloco, PCP, Verdes e PAN e a abstenção do PSD e do CDS. Foi assim reposta a lista de doenças – que incluem a paramiloidose familiar, a doença de Machado-Joseph, a SIDA, a esclerose múltipla, doenças de foro oncológico, a esclerose lateral amiotrófica (ELA), a doença de Parkinson ou a doença de Alzheimer – e criada ainda a possibilidade de pacientes de outras enfermidades acederem também ao regime especial. As novas alterações à lei aguardam a promulgação pelo Presidente da República e a consequente publicação no Diário da República.
Foi este relatório que forneceu os argumentos ao governo PSD-CDS para justificar a alteração da Lei 90/2009, que estabelece o regime especial de proteção na invalidez, através de um decreto-lei aprovado em Conselho de Ministros que extinguia a lista de doenças suscetíveis de proteção especial e estabelecia como condição de acesso ao regime especial que o requerente se encontrasse incapacitado para o trabalho e fosse portador de uma doença que clinicamente se previsse evoluir “para uma situação de dependência ou morte num período de três anos”.
Promulgado no último dia da vigência do governo Passos Coelho, o decreto-lei 246/2015, que determinou estas alterações, provocou protestos generalizados por parte das associações de doentes, de médicos e da respetiva Ordem, que denunciaram as novas condições por serem inaplicáveis, além de mostrarem uma extraordinária crueldade em relação a pessoas em sofrimento. “Nenhum médico vai dizer que é previsível que um doente vai morrer num prazo de três anos”, afirmou o presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar, Rui Nogueira.
“Especialista” em rejeitar pedidos de reforma
A divulgação do relatório permite agora, em primeiro lugar, saber quem são os dez signatários e qual a sua autoridade, conhecimentos e experiência para propor ao governo alterações que implicam em consequências tão drásticas para pessoas fragilizadas por doenças incapacitantes. Esperava-se que alguns deles pelo menos fossem especialistas em doenças crónicas, mas não é isso que acontece. Há apenas quatro médicos entre os dez, sendo os restantes juristas, diretores ou funcionários da Caixa Geral de Aposentações, da Direção-Geral de Saúde, do Instituto de Segurança Social, da Direção-Geral da Administração e do Emprego Público e do Instituto Nacional para a Reabilitação. Um dos médicos é também da CGA, onde ocupa o cargo de Médico-Chefe do Núcleo Médico daquela instituição. Trata-se de M. M. Camilo Sequeira, que se notabilizou em 2007 por rejeitar os recursos que lhe foram apresentados por pacientes que viram negado o seu pedido de reforma por invalidez pelas Juntas Médicas.
Os casos ganharam foros de escândalo nacional devido à gravidade da doença e à insensibilidade das decisões. Camilo Sequeira disse não ter “qualquer dúvida” em confirmar a negativa da Junta Médica de aposentar um professor de Filosofia que tinha cancro na laringe e estava afónico, afirmando que o docente, que morreria pouco depois, “não estava totalmente incapacitado para trabalhar”. Outro caso tristemente célebre foi o de uma funcionária pública de 57 anos que teve cancro nos intestinos e que depois de uma cirurgia de urgência seguida de quimio e radioterapia viu rejeitado o seu pedido de aposentação. Diante do recurso apresentado pelo médico oncologista, que alegava que a sua paciente sofria de "síndrome de fadiga crónica" e "urgência fecal com episódios de incontinência”, que lhe limitavam muito a autonomia e qualidade de vida, Camilo Sequeira invocou a "interpretação jurídica da lei" para fundamentar o parecer negativo: "cancro em remissão não é critério de aposentação", afirmava no seu despacho de quatro linhas. Só naquele ano, pelo menos onze casos igualmente escandalosos envolvendo a CGA foram tornados públicos.
Os outros médicos são Rizério Salgado, médico de família na Unidade de Saúde Familiar São Julião de Oeiras e que foi vice-presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar, e José Alexandre Diniz, médico generalista que ocupou vários cargos de diretor de serviços e de departamento na Direção-Geral de Saúde e Maria Conceição Gonçalves Barbosa.
SIDA e doenças oncológicas desvalorizadas
Havia alguma expectativa de que a fórmula de prognóstico de dependência ou morte em três anos tivesse sido criada pelo governo e não estivesse no relatório. Afinal de contas, como disse o presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar, Rui Nogueira, "o que está em causa é a invalidez, não é a dependência ou morte", adiantando que uma pessoa pode não estar dependente, mas estar inválida para o trabalho. Ora nenhum médico “vai dizer que é previsível que um doente vai morrer no prazo de três anos". E o bastonário da Ordem dos Médicos insistiu: “não é terminologia médica”.
Mas a condição está mesmo no relatório, com uma redação muito semelhante à que acabou por se tornar no artigo mais importante do decreto-lei do governo PSDS-CDS.
O relatório parte, desde o início, da premissa que “a discriminação positiva de um conjunto de beneficiários” pelo facto de serem portadores de uma doença invalidante “fere o princípio da equidade legalmente previsto”. E adianta dois exemplos:
“O HIV/SIDA à data da sua inclusão nas doenças com proteção especial era rapidamente incapacitante e de mau prognóstico. A evolução dos cuidados médicos rapidamente esvaziou essa carga permitindo que seja atualmente uma doença crónica raramente incapacitante” pode-se ler no relatório, indiciando assim que os autores do documento consideram que a SIDA não deveria receber proteção especial. O mesmo para o cancro: “Também a doença oncológica, embora venha a ser previsivelmente a primeira causa de morte, é hoje, num número crescente de casos, uma doença crónica com períodos de remissão completa por muitíssimos anos”.
Sendo assim, os signatários concluem que não faz sentido a existência de uma lista de doenças objeto de proteção especial na invalidez”.
Sem conhecer este relatório, e referindo-se apenas ao decreto-lei do governo PSD-CDS, Carlos Oliveira, secretário-geral da Liga Portuguesa Contra o Cancro e médico oncologista, disse que ele foi feito por quem “nunca esteve em contacto com doentes de cancro desconhecendo, por isso a sua realidade”, já que “nos doentes oncológicos, a avaliação não pode ser feita com limites temporais tão estritos e com a obrigação de, a partir de uma incapacidade total, fazer uma previsão de morte em tão curto espaço de tempo”. Para ele, o objetivo do decreto era apenas “cortar nas pensões de invalidez”.
Lista de doenças e "novo paradigma"
Refira-se como curiosidade que a comissão chegou a elaborar uma lista alternativa de 21 grupos de doenças, para depois concluírem “não ser possível, com rigor e fiabilidade, elaborar uma lista desta natureza”.
O relatório propõe assim, em alternativa à lista, um novo paradigma, “a observância de uma condição que engloba um conjunto de requisitos a reunir cumulativamente, independentemente da doença de que se é portador”. A condição proposta é: “situação de incapacidade permanente para o trabalho desempenhado, verificada pela entidade competente em idade ativa, não compensável através de produtos de apoio ou de adaptação ao/ou do posto de trabalho, decorrente de doença de causa não profissional ou responsabilidade de terceiros, que clinicamente se preveja evoluir para uma situação de dependência ou morte num período de três anos”.
Em nenhuma parte do relatório se justifica o porquê do prazo de três anos, e porque não dois, ou quatro, nem como esse prognóstico pode ser feito por um clínico sem ferir o próprio Código Deontológico da Ordem dos Médicos.
As principais alterações do decreto-lei 246/2015 foram anuladas por uma apreciação parlamentar requerida pelo Bloco de Esquerda, que aprovou o decreto da Assembleia da República 11/XII/1ª, com os votos favoráveis do PS, Bloco, PCP, Verdes e PAN e a abstenção do PSD e do CDS. Foi assim reposta a lista de doenças – que incluem a paramiloidose familiar, a doença de Machado-Joseph, a SIDA, a esclerose múltipla, doenças de foro oncológico, a esclerose lateral amiotrófica (ELA), a doença de Parkinson ou a doença de Alzheimer – e criada ainda a possibilidade de pacientes de outras enfermidades acederem também ao regime especial. As novas alterações à lei aguardam a promulgação pelo Presidente da República e a consequente publicação no Diário da República.
Fonte: Esquerda.net
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