sábado, 21 de janeiro de 2017

Salvador no programa Alta Definição

Ninguém devia ter o poder de fazer os deficientes sentirem-se pessoas de segunda. Ora sabemos que o olhar dos outros é que nos constrói (ou destrói) e é importante percebermos que os outros somos nós.

Estive fora um bom par de semanas e aterrei depois de grandes acontecimentos internos e externos. Habitualmente não vejo muita televisão, mas recebi logo à chegada vários whatsapps e sms a recomendar que me sentasse no sofá com tempo para andar para trás na programação, de forma a poder ver a grande entrevista que o Salvador Mendes de Almeida deu ao Daniel Oliveira, no programa Alta Definição.


Foi a primeira coisa que fiz depois de me instalar na minha nova vida. Conheço bem o Salvador, sou voluntária na sua Associação há mais de uma década e achei que ia ver uma boa entrevista de um amigo querido, a quem estou ligada por sentimentos e valores. Confesso que achava que podia de certa forma antecipar o que ia ouvir, mas estava enganada. Não porque o Salvador tenha contado coisas radicalmente novas, mas pela maneira como conseguiu pôr toda a sua vida em perspectiva. E mais, pela transparência com que falou de coisas fáceis e difíceis (muito mais difíceis do que fáceis), sem deixar de fora temas que naturalmente poderiam ficar de fora da conversa.

Sabemos que Daniel Oliveira aposta há muito em revelar os outros talentos dos seus entrevistados. Num país com a escala do nosso, onde quase todas as pessoas de todas as gerações que marcam a paisagem já foram entrevistadas, não é fácil manter conversas vivas sem alguns temas soarem a ‘mais do mesmo’, mas essa tem sido a arte do entrevistador: percorrer outros caminhos e (e)levar os convidados a outros patamares. Foi o que aconteceu com o Salvador Mendes de Almeida.

De forma natural e tranquila, Salvador contou como é viver a condição de tetraplégico; como foi o acidente e como tem sido a sucessão de tempos que o trouxeram até aqui e passaram por criar uma associação para apoiar outras pessoas em idênticas condições. Lembrou que agora já está há mais anos na cadeira de rodas do que os anos que viveu antes do desastre de mota, pois tinha 16 anos e agora já tem 34. Não se deteve nos detalhes do acidente e nunca apelou ao sentimento fácil, muito pelo contrário, falou com depuração e precisão. Foi factual e objectivo.

Aquilo que mais impressiona nesta entrevista é a maneira como o Salvador resgata o nosso olhar sobre as pessoas com deficiência. Ao aceitar responder a perguntas mais intimistas e porventura devassantes, que obrigam a contar como é que faz quando tem que ir à casa de banho, ou como aprendeu a dormir sozinho apesar de não ter capacidade para se virar na cama, nem tem movimentos que lhe permitam puxar o lençol para cima nem para baixo; ao aceitar as regras do jogo do entrevistador, o Salvador ilumina as sombras que habitualmente rodeiam este tipo de temas e as rotinas que lhes estão associadas.

O sorriso franco e o olhar limpo do Salvador Mendes de Almeida interpelam pela maturidade que revelam. Para ele não há tabus nem conversas proibidas. Tudo nele se torna tão natural que fica infinitamente mais fácil ver o que está à vista na esmagadora maioria das pessoas com deficiência, mas que nem sempre conseguimos ver. Falo das dificuldades, claro, mas em especial dos pontos de superação. Uma pessoa portadora de deficiência, congénita ou adquirida, é sempre alguém a quem a vida impõe uma lógica de superação permanente. Hora após hora, dia após dia, todas as semanas de todos os meses e anos são dias de provação. E superação, insisto. E é este olhar que o Salvador convoca, com a sua atitude e a sua maneira elegante de falar de situações mais ou menos escatológicas.

Ouvimos o Salvador e percebemos que apesar de não ter uma queixa, nem deixar escapar um lamento, tudo é difícil na vida de um tetraplégico. Aliás, tudo é difícil, devastadoramente difícil e extraordinariamente erosivon a vida das pessoas com deficiência. E na vida das suas famílias e cuidadores. Acontece que por incrível que pareça, não é essa a mensagem mais forte que o Salvador passa. Aquilo que fica a fazer eco é, justamente, a maneira como ele encara toda esta realidade e se supera em cada hora. Mais, a coragem, a valentia com que enfrenta desafios e se empenha em derrubar obstáculos fazem com que sejamos obrigados, também nós, a parar para pensar de que forma poderemos eliminar barreiras. Desde logo, essa tenebrosa barreira que é o olhar sobre as pessoas com deficiência.

Salvador Mendes de Almeida fala bem e foi muito claro: os deficientes não são cidadãos de segunda categoria! E ninguém devia ter o poder de os fazerem sentir-se pessoas de segunda. Sabemos que o olhar dos outros é que nos constrói (ou nos destrói!) e é importante percebermos que os outros somos nós sempre que estigmatizamos, catalogamos, rotulamos ou nos fechamos ao que é diferente.

Nós, quero dizer, os que temos a sorte de viver vidas sem grandes condicionantes, e nos esquecemos de limpar o olhar, de abrir o coração e de partir a casca do entendimento sobre a verdadeira deficiência, no sentido de dar passos e agir consequentemente. Nesta lógica, só agravamos as diferenças e acabamos por tratar muitas vezes os portadores de deficiência como cidadãos de segunda. E isso é desumano e intolerável. E também por isso esta entrevista do Salvador merece ser divulgada e partilhada, para que a sua voz seja amplificada e possa ser ouvida tantas vezes quantas as que forem necessárias para eliminarmos este sistema perverso de categorias em que não é possível nem digno encaixar nenhum ser humano. Fonte: Observador

Veja AQUI a comentada prestação do Salvador no programa Alta Definição. 

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