Talvez a partir de agora consigam imaginar o que nos obrigam a
viver pelo facto de nascermos ou adquirirmos uma deficiência. É uma sentença
que nos espera a todos. Uma pena que obrigatoriamente temos de cumprir. E não
temos direito, e nem nunca teremos, a um espaço diário nos telejornais das tvs,
onde destacam os vossos grandes feitos realizados em casa. São tratados como
heróis. Nós esquecidos. Também não tivemos, e nem temos a solidariedade em
cadeia dos vizinhos, e muito menos das câmaras municipais, juntas de freguesia,
etc.
Confesso que estranho ver tanta gente desesperada por se
encontrar em casa. Muitos há anos que se queixavam de falta de tempo para si e
para os seus, agora que têm todo o tempo do mundo reclamam sem parar.
Aceitam os conselhos de um veterano?
- Ponham a conversa em dia. Eu não o podia fazer. Não havia
telemóveis para esse fim e nem para realizar videochamadas. Havia telefones
fixos para quem pudesse pagar a instalação e suportar o preço bem alto das
chamadas. Era obrigado a ficar semanas sem falar com ninguém;
-Jogos de consola, ou no smartphone também não existiam. Mais
uma diversão à vossa disposição;
-Internet e computadores também estavam ao alcance de poucos.
Maioria de vós tem essas ferramentas à disposição;
-TV Cabo nem pensar. Só havia 2 canais. RTP1 e RTP2. Só mais
tarde surgiu a SIC e a TVI. Filmes só um por semana na RTP1, era às 4ªs feiras
no programa “Lotação Esgotada”. Iniciava geralmente às 21h e pouco. Era uma
grande festa. O país parava. Hoje todos têm ao dispor vários canais, filmes e
séries sem fim. Porque não finalmente ver aquela lista de filmes e séries que
sempre quiseram ver e nunca conseguiram?;
- Ler. Lembram-se dos livros, e não só, que se encontram à
vossa espera na biblioteca? Como não havia ebooks, e não conseguia desfolhar os
livros em papel por falta de movimentos finos nas mãos, também não me era
possível passar o tempo disponível a ler;
-Estigma e indiferença. Passei a ser o coitadinho e aleijadinho
para quem a vida acabou. No vosso caso são vistos como heróis. Pensem nisso;
-Muitos de nós nem em casa tem direito a ficar. Somos
empurrados para lares. Aproveitem a vossa casa. Tenham prazer em viver nela.
Lembram-se das vezes que se queixaram por não a poder desfrutar? Não a olhem
como sendo um túmulo, mas sim o lugar que escolheram para viver. Aproveitem-na,
melhorem-na, arrumem as gavetas, prateleiras, armários e aqueles espaços que há
muitos anos dizem não ter tempo para arrumar. Ou simplesmente ponham o sono em
dia, ou não façam nada;
-Sempre sonhamos com a possibilidade de trabalhar a partir de
casa. O Estado nunca nos criou condições para tal. A vós sim;
-Compras online com a facilidade atual nem pensar. Mais um
ponto a vosso favor.
Outra desvantagem é não conseguirmos ir sozinhos à janela
interagir com os vizinhos, nem circular sem limitações por todos os espaços das
nossas casas. Só o fazemos com o apoio de terceiros. Vocês são livres de o
fazer. Seria muito importante que todos vós que se encontram em desespero por
não poderem sair de casa, logo que voltem à liberdade, se lembrem de nós, quem
sempre o teve que fazer, e vai continuar a fazer, e nos ajude a libertar desta
sentença imposta pelo Estado. Será que terão essa capacidade e serão nossos
aliados na luta pela conquista da nossa autonomia e dignidade?
tentativa entrar serviço finanças da Chamusca |
Neste momento sou muito mais livre, tenho
emprego, veículo adaptado, assistência pessoal, vivo no lugar que escolhi, mas
continuo a não poder ir e vir a muitos dos lugares que desejo por falta de
acessibilidades. E muitos dos meus amigos continuam a viver em lares de idosos
sem possibilidades de fugir ao maldito vírus.
Às minhas assistentes pessoais Patricia
Gonçalves, Cláudia Grilate, Inês Mendes e Catarina Nicolau, a minha gratidão
por estoicamente continuarem a cumprir a sua missão, a quem continua a
trabalhar para nos proteger, e principalmente a quem se encontra infetado, e
quem se revê no que relatei, o meu abraço solidário.
Caso queiram conhecer mais pormenores
sobre o meu isolamento social, conheçam um pouco da minha história no meu
blogue “Nós Tetraplégicos”:
E por fim, todos vós adotaram a frase
“Vai Ficar Tudo Bem”. Não acreditam na frase? Acreditem, tem mesmo que ficar
tudo bem.
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