quarta-feira, 15 de abril de 2020

Conselhos de um especialista em isolamento social desde 1991

Eu, e muitas pessoas com deficiência, vivemos em isolamento social há vários anos. No meu caso desde 1991. É com curiosidade que vejo o comportamento da maioria das pessoas ditas normais ao passarem pela mesma situação, mesmo sabendo que é um período passageiro. No meu caso é definitivo.



 Pelo que presencio, uma grande maioria está no limite e não suportaria esta situação por muito tempo. Portam-se como se estivessem num túmulo. Como se fosse uma tragédia. A tragédia maior não parece ser o vírus, mas sim o facto de se encontrarem confinadas a um espaço.

Talvez a partir de agora consigam imaginar o que nos obrigam a viver pelo facto de nascermos ou adquirirmos uma deficiência. É uma sentença que nos espera a todos. Uma pena que obrigatoriamente temos de cumprir. E não temos direito, e nem nunca teremos, a um espaço diário nos telejornais das tvs, onde destacam os vossos grandes feitos realizados em casa. São tratados como heróis. Nós esquecidos. Também não tivemos, e nem temos a solidariedade em cadeia dos vizinhos, e muito menos das câmaras municipais, juntas de freguesia, etc.

Confesso que estranho ver tanta gente desesperada por se encontrar em casa. Muitos há anos que se queixavam de falta de tempo para si e para os seus, agora que têm todo o tempo do mundo reclamam sem parar.

Aceitam os conselhos de um veterano?

- Ponham a conversa em dia. Eu não o podia fazer. Não havia telemóveis para esse fim e nem para realizar videochamadas. Havia telefones fixos para quem pudesse pagar a instalação e suportar o preço bem alto das chamadas. Era obrigado a ficar semanas sem falar com ninguém;

-Jogos de consola, ou no smartphone também não existiam. Mais uma diversão à vossa disposição;

-Internet e computadores também estavam ao alcance de poucos. Maioria de vós tem essas ferramentas à disposição;

-TV Cabo nem pensar. Só havia 2 canais. RTP1 e RTP2. Só mais tarde surgiu a SIC e a TVI. Filmes só um por semana na RTP1, era às 4ªs feiras no programa “Lotação Esgotada”. Iniciava geralmente às 21h e pouco. Era uma grande festa. O país parava. Hoje todos têm ao dispor vários canais, filmes e séries sem fim. Porque não finalmente ver aquela lista de filmes e séries que sempre quiseram ver e nunca conseguiram?;

- Ler. Lembram-se dos livros, e não só, que se encontram à vossa espera na biblioteca? Como não havia ebooks, e não conseguia desfolhar os livros em papel por falta de movimentos finos nas mãos, também não me era possível passar o tempo disponível a ler;

-Estigma e indiferença. Passei a ser o coitadinho e aleijadinho para quem a vida acabou. No vosso caso são vistos como heróis. Pensem nisso;

-Muitos de nós nem em casa tem direito a ficar. Somos empurrados para lares. Aproveitem a vossa casa. Tenham prazer em viver nela. Lembram-se das vezes que se queixaram por não a poder desfrutar? Não a olhem como sendo um túmulo, mas sim o lugar que escolheram para viver. Aproveitem-na, melhorem-na, arrumem as gavetas, prateleiras, armários e aqueles espaços que há muitos anos dizem não ter tempo para arrumar. Ou simplesmente ponham o sono em dia, ou não façam nada;

-Sempre sonhamos com a possibilidade de trabalhar a partir de casa. O Estado nunca nos criou condições para tal. A vós sim;

-Compras online com a facilidade atual nem pensar. Mais um ponto a vosso favor.

Outra desvantagem é não conseguirmos ir sozinhos à janela interagir com os vizinhos, nem circular sem limitações por todos os espaços das nossas casas. Só o fazemos com o apoio de terceiros. Vocês são livres de o fazer. Seria muito importante que todos vós que se encontram em desespero por não poderem sair de casa, logo que voltem à liberdade, se lembrem de nós, quem sempre o teve que fazer, e vai continuar a fazer, e nos ajude a libertar desta sentença imposta pelo Estado. Será que terão essa capacidade e serão nossos aliados na luta pela conquista da nossa autonomia e dignidade?

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Todos vós se escondeis do inimigo desconhecido. O nosso castrador é conhecido. Está identificado por nós há muito tempo, é o Estado. Vós brevemente passareis a ser livres novamente. Nós continuaremos confinados e limitados.
Neste momento sou muito mais livre, tenho emprego, veículo adaptado, assistência pessoal, vivo no lugar que escolhi, mas continuo a não poder ir e vir a muitos dos lugares que desejo por falta de acessibilidades. E muitos dos meus amigos continuam a viver em lares de idosos sem possibilidades de fugir ao maldito vírus.
Às minhas assistentes pessoais Patricia Gonçalves, Cláudia Grilate, Inês Mendes e Catarina Nicolau, a minha gratidão por estoicamente continuarem a cumprir a sua missão, a quem continua a trabalhar para nos proteger, e principalmente a quem se encontra infetado, e quem se revê no que relatei, o meu abraço solidário.
Caso queiram conhecer mais pormenores sobre o meu isolamento social, conheçam um pouco da minha história no meu blogue “Nós Tetraplégicos”:
E por fim, todos vós adotaram a frase “Vai Ficar Tudo Bem”. Não acreditam na frase? Acreditem, tem mesmo que ficar tudo bem.

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