Dando continuidade à minha história de vida, 1, 2, 3, 4...e abaixo a 5ª parte...e também no Portal Vida Mais Livre
Os dias que antecederam a minha vinda a casa pela primeira vez, após quase um ano de internamento continuo em hospitais, foram de grande ansiedade. Ao contrário de agora que só vai a casa, durante a reabilitação, quem tem casas acessíveis, uma cadeira de rodas de banho, sistema de transferência, etc. em 1991 nada dessas preocupações existiam. Quando estava a chegar a altura da alta definitiva, informavam-nos que iríamos passar o fim-de-semana a casa e pronto. Cada um que se desenrascasse. Esse dia chegou. Foi o Natal de 1991. Única casa que tinha acessibilidades e condições para me receber era de uma irmã minha que morava no Alentejo. Família juntou-se, e receberam-me muito bem. Não houve choros e tristezas. Criou-se um excelente ambiente e eu senti-me muito bem, e pude começar logo a saborear alimentos que não me saiam da cabeça há meses. Incrível como mesmo num Hospital, numa situação dramática como a minha, eu tinha momentos que me apetecia imenso umas azeitoninhas…enchidos caseiros…aquelas coisas que só nas nossas casas sabem bem…Ai que saudades…mas logo verifiquei que era só saudades de experimentar. Estômago é limitado e fica-se com a sensação que cheirar, ter ali, tocar, por na boca…é o suficiente. Ainda por cima sendo no Natal, mesas fartas.
Cheguei na sexta-feira já perto da noite, jantamos, deitaram-me num sofá e pude ter um serão, na companhia da família, ao calor da lareira muito revigorante. Olhos da minha mãe sobre meu corpo e algumas perguntas, como por exemplo: tenta lá mexer a perna filho. Mexe lá a mão…deixavam-me de coração partido e sem saber como responder. Fazia-me forte e disfarçava. Minha irmã mais velha, mulher de muita fé, se ouvisse, logo dizia: “…não consegue agora, mas para o ano tenho certeza absoluta que está a andar. Vão ver. Eu confio em Deus!” Eu no fundo, embora não tão convictamente, também tinha essa esperança. Sempre achei que durante os dois primeiros anos algo de bom poderia vir a acontecer. Não foi o caso. Mas embora já me encontre tetraplégico há 20 anos, sinceramente a esperança persiste. Não com a mesma força inicial, mas aquela sensação no fundo do nosso ser, que um dia, quem sabe, algo fantástico poderá acontecer. Não direi que cura completa, mas algo que medicina possa fazer. Mas não uma esperança desesperada e por datas, mas sim, só uma esperança.
Primeira noite passou. Senti-me de manhã com muito frio e um pouco esquisito, mas achei que fosse normal. Umas horas depois de me levantar, começo a sentir um mal estar terrível: um frio como nunca tinha acontecido, um grande incomodo e sensação aflitiva, isto mesmo com lareira acesa. Para me ajudar, deitaram-me no sofá, cobriram-me de roupa e ligaram mais um aquecedor. Mas nada, frio e mal estar não passaram. Achei que fosse da temperatura baixa e não de mim o problema. Agora sei que essa sensação horrível que sentimos ao nos expormos a temperaturas extremas, faz parte da nossa patologia. Mas só o soube uns 15 anos depois. Apareceram algumas visitas, eu quase sempre enrolado em roupa no sofá, as pessoas conhecidas verem-me pela primeira vez naquela situação, fazia-me um pouco de confusão. Não sabia como agir, o que dizer, falar, explicar…evitava tempos mortos e rezava para tempo passar. É muito estranho estarmos bem e de repente ficarmos totalmente diferentes para pior. Aos olhos dos outros não deve ser fácil. Precisam de respostas, ou por curiosidade, ou porque se interessam mesmo por nós, nosso estado de saúde. Mas senti muitas dificuldades no inicio em explicar que estava, “inválido”, “paralítico”, “inutilizado” (palavras literalmente usadas pela maioria das pessoas no interior). Era isso que tinham ouvido falar e ao verem-me puderam confirma-lo. Sentia-me culpado não sei de quê. Queria que pessoas entendessem que realmente estava numa cadeira de rodas, não conseguia andar, alimentar-me, vestir-me…enfim…dependente para tudo, mas que estava bem, não queria ninguém triste, era um problema que eu sozinho tinha que passar e não o fim do mundo…Estar temporariamente doente é uma coisa. Para sempre é outra. Era essa a diferença que não sabia explicar e que para elas fazia toda a diferença. No fundo não queria ter pena de quem tinha pena de mim. Queria poupa-los. Não queria ver ninguém a sofrer por minha causa. Hoje se me passam a mão pelo cabelo e me chamam de coitadinho não reajo da mesma maneira. Tentarei dentro do contexto “educar” a pessoa. Mas naquela altura não sabia lidar com a situação e aqueles seres simples e ingénuos não o faziam por mal. Verem um rapaz jovem, cheio de vida, sem problema nenhum meses atrás, e de repente verem-me frágil, dependente, até assustado, numa cadeira de rodas…não deve ter sido fácil.
No Domingo era dia do meu treino intestinal e banho. Nada adaptado e nem sabia o que isso significava. De manhã sentam-me na sanita (vaso), colocam uma cadeira alta em cada um dos meus lados, e ali fiquei a tentar equilibrar-me. De seguida o banho. Juntam-se esforços e transferem-me para a banheira. Foi uma sensação muito ruim. De repente minha família viu meu corpo “morto”. Lidou com ele, sentiu sua ineficácia e incapacidade. Isso mexeu muito comigo. Achei e senti que ao verem meu corpo totalmente nu e sem um único movimento, tendo eles que fazer tudo, também ficaram com a certeza que nada era como antes. Eu dependia de terceiros para tudo. Além de tudo isso, não foi fácil mostrar minha intimidade. Nos hospitais era uma coisa, ali era outra. Depois desse episódio nada foi como antes. Algumas vezes vi ao longe minha mãe ou irmã a chorarem. Seus olhos também o denunciava. Havia uma frase que minha mãe dizia muita vez: “Nasceste num dia tão lindo (quinta-feira Santa) meu filho, e sofres tanto!”. Doía-me muito ouvir isso. Impossível não ver seu coração a sangrar. Vê-la sofrer por mim era uma tortura. Chegava a sentir necessidade de pedir desculpa por ter tido aquele acidente e de estar a faze-la sofrer. Sentia-me culpado de não sei o quê, era uma sensação muito estranha.
Domingo há noite voltei para o hospital, e por incrível que pareça senti um grande alivio.
Continua…
Olá Eduardo.
ResponderEliminarTenho andado um pouco ausente de facebook e blogues e por isso ainda não tinha lido a continuação da tua história, continuo a dizer que deveria ser publicada porque era uma forma de ajudar muitas outras pessoas que infelizmente estarão a passar por situações idênticas...
Aquele abraço e aquele beijo amigo. Tu sabes que te admiro muito!!
Voçês tanto insistem que qualquer dia vou ter que pensar nessa hipótese. Vamos ver...espero que tenhas passado um excelente Natal.
ResponderEliminarTambém gosto muito de ti.
Fica bem
''Dos fracos não rezam a história'' Eduardo, depois de ler teus percursos na reabilitação e ler os teus textos hoje, vejo que és um vencedor, parabéns amigo.
ResponderEliminarForte abraço e força para teu sucesso seja reconhecido neste ano que entra.
FELIZ 2012.
Também és dos da velha guarda. Passamos por cada uma, não é Martinho? Imagino as que tens para contar...
ResponderEliminarFica bem e obrigado.
Boa tarde! Rapais,comovente sua história, você é um homem de fé. Sei que o que nos sustentar é nosso bom deus. Por isso que sempre temos força para continuar...
ResponderEliminarabraço meu querido
Obrigado pelo comentário. Também te desejo muita sorte.
ResponderEliminarFica bem e bom 2012