Segundo confirmou ao PÚBLICO Miguel Paiva, presidente do conselho de administração do Centro Hospitalar de Entre o Douro e Vouga, que integra o Hospital de São Sebastião, em vez de pedir uma autorização judicial para a esterilização, a mãe dirigiu-se ao tribunal, sim, mas para requerer a interdição da filha — a figura legal da interdição significa, no caso de pessoas com anomalia psíquica, que estas são equiparadas a um menor de idade, não podem votar, gerir património ou perfilhar, por exemplo; ao tutor designado pelo tribunal cabe zelar pelo bem-estar, saúde e educação do interditado.
Algum tempo depois, a mãe da jovem de 20 anos voltou ao hospital, demonstrou que passara a ser a tutora legal da filha e “fez muita pressão” para que a laqueação de trompas acontecesse, explica ainda Miguel Paiva. Os médicos avaliaram de novo e acabaram por realizar, em 2015, a intervenção, depois de a mãe da jovem “assinar a declaração de consentimento informado”.
Não há uma lei específica que enquadre este tema da esterilização de deficientes — há um “vazio legal”, na opinião de Paula Campos Pinto, coordenadora do Observatório da Deficiência e dos Direitos Humanos. Quando confrontada com a descrição do caso da jovem de 20 anos, diz que ele “é bem ilustrativo desse vazio legal”. Na sua opinião, o que se passou “configura uma situação de violação do direito à integridade física e de abuso de poder”, algo que, julga, “continua a ser frequente”.
Já André Dias Pereira, jurista, presidente da direcção do Centro de Direito Bioético, nota que “o Direito é mais, muito mais do que a lei”. É composto de doutrina, pareceres e regulamentos, como o Código Deontológico dos médicos. “Nenhuma dúvida tenho de que é preciso autorização judicial [específica para a cirurgia], pois a esterilização pode justificar-se em alguns casos, sim; mas pode não se justificar noutros, em muitos outros. E os pais ou tutores não têm a imparcialidade necessária para tomar essa decisão sozinhos”, afirma. “Não basta os tutores e o médico, na tranquilidade de um consultório, decidirem isto.”
Haver um processo, uma decisão de um juiz, de um tribunal é o garante de que a intervenção é do interesse da pessoa com deficiência, sustenta. “Assim sendo, esse hospital cometeu uma violação do procedimento previsto pelo Direito e podem os médicos estar sujeitos a responsabilidade disciplinar.” É a opinião deste especialista.
Rui Nunes, catedrático da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, presidente da Associação Portuguesa de Bioética, faz uma apreciação do caso, que lhe é relatado pelo PÚBLICO, “apenas do ponto de vista ético”. E é esta: “De acordo com princípios éticos consensuais e com as normas do Código Deontológico da Ordem dos Médicos, devia ter-se obtido consentimento judicial.”
O assunto é difícil e polémico. No final de Abril, tal como o PÚBLICO noticiou, foi divulgado o relatório do comité das Nações Unidas que avaliou como aplica Portugal a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, ratificada pelo país em 2009. Nele denuncia-se que pessoas com deficiência, “especialmente aquelas que foram declaradas legalmente incapacitadas, continuam a ser, contra sua vontade, objecto de interrupção da gravidez, esterilização” e outras intervenções.
Os peritos da ONU manifestam a sua preocupação com estas situações. E aconselham o país a tomar medidas para “assegurar que se respeita o direito ao consentimento livre, prévio e informado do tratamento médico e que se proporcionam mecanismos de apoio” às pessoas com deficiência para que estas possam tomar decisões.
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