“Desde os anos 1980, as mudanças reais nas vidas das pessoas com deficiência em Portugal têm sido mínimas: os benefícios sociais são insuficientes para elevar a vida das pessoas acima da linha de pobreza, os problemas no acesso ao emprego mantêm-se e continuam a ser excluídas por um sistema de ensino que não considera as suas necessidades e por um mercado de trabalho que exclui a diferença”, escreve o autor, Fernando Fontes, investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.
No ensaio de pouco mais de 100 páginas recorda os estudos mais recentes e os dados do Instituto Nacional de Estatística que estão disponíveis, olha para a evolução do movimento associativo e das políticas nesta área, em Portugal — tema, aliás, da sua tese de doutoramento pela Universidade de Leeds, no Reino Unido. E conclui: “É urgente uma revolução nas vidas das pessoas com deficiência em Portugal que permita a sua emancipação social.”
O que é que isto significa realmente? Foi este o tema de uma entrevista telefónica ao PÚBLICO.
O papel do trabalho
Fernando Fontes começa por lembrar que as primeiras medidas políticas de deficiência em Portugal datam “do final da ditadura”, nomeadamente “com as primeiras experiências de integração de crianças com deficiência visual nas escolas públicas”.
Mas “isto são medidas muito pontuais e só a partir de 1974 é que elas começam a desenvolver-se” com a criação, por exemplo, de subsídios específicos, criados em grande medida por causa das reivindicações dos movimentos de defesa dos direitos dos deficientes das Forças Armadas.
Estes subsídios, bem como outros apoios, caso da tarifa reduzida em transportes públicos ou do tratamento hospitalar gratuito, foram sendo, no final dos anos 70, e nos anos 80, alargados progressivamente a outras pessoas com deficiência. E depois?
“Em Portugal o Estado-providência nunca atingiu níveis de redistribuição como noutros países”, nota. “O subsídio vitalício, que é a principal forma de rendimento para as pessoas com deficiência com mais de 24 anos... enfim, não queria dizer que é ridículo, mas quase. Quem é que neste país consegue viver com 176 euros por mês?” Mesmo sabendo que está previsto um complemento extraordinário de solidariedade de 17 euros para quem tem menos de 70 anos e de 35 euros para quem tem mais.
Em suma, as pessoas com deficiência "continuam dependentes" das famílias ou da solidariedade social, “não conseguem ter uma vida como qualquer outro cidadão”. E também não têm acesso ao mercado de trabalho. “Há a ideia de que têm menos rendimento no trabalho, que não conseguem exercer as actividades que lhes são pedidas. Ora o trabalho é algo absolutamente estrutural para nós, estrutura o nosso dia-a-dia, permite realizarmo-nos”, para além de garantir o sustento.
Mais alguns dados que constam do ensaio agora publicado: em 2011 a taxa de desemprego para a população em geral era de 13,18%; para as pessoas com 15 ou mais anos “com, pelo menos, uma dificuldade” era superior a 19%; “a grande maioria desta população inactiva está reformada (79,73%), não obstante apenas 6,66% terem sido considerados incapazes para o trabalho pelas autoridades e de apenas 1,79% serem estudantes”.
Em suma: qualquer revolução tem que passar pelo mercado de trabalho, diz o investigador de Coimbra. “É absolutamente essencial.”
Vida Independente
Mas, para que os patrões e a sociedade em geral se abram a quem tem uma deficiência, a primeira “revolução” a fazer é mesmo “ao nível das mentalidades”, sublinha.
“Temos concepções de deficiência absolutamente incapacitantes”, apesar de há décadas se falar do chamado “modelo social da deficiência” — “Neste modelo, impera a ideia de que não é a deficiência que impede as pessoas de participar na vida em sociedade, mas sim a forma como a deficiência é socialmente construída e as barreiras sociais, políticas, físicas e psicológicas criadas pela sociedade que limitam e constrangem a vida das pessoas com deficiência”, explica. Ou seja, no “modelo social da deficiência”, de que é defensor, esta “não é vista como um problema individual da pessoa, mas como um problema da sociedade”.
“Creio que este Governo vai no sentido certo”, prossegue. “Está a decorrer um projecto-piloto de Vida Independente em Lisboa, e está a ser preparada legislação para criar mais projectos-piloto em todo o país”, concretiza. Aplicar o conceito de Vida Independente, como sublinha no seu livro, significa uma total revisão dos pressupostos estatais e princípios políticos na atribuição dos direitos sociais.
Em vez de o Estado pagar cerca de 900 euros mensais por cada utente num lar residencial, exemplifica Fontes, a pessoa pode antes solicitar a sua avaliação por um Centro de Vida Independente, que dirá qual o número de horas diárias de assistência pessoal de que ela precisa e ser-lhe-á entregue uma verba, directamente, que lhe permita pagar esses serviços (apoio domiciliário ou outros). “Neste momento as pessoas estão em casa, sozinhas ou completamente dependentes da família, ou estão em instituições, em lares. Isto não é solução. A solução passa pelos pagamentos directos às pessoas, como tem sido feito noutros países, que assim podem contratar um assistente pessoal, despedi-lo se não gostarem do serviço prestado, decidir onde vivem, com quem vivem, emanciparem-se.”
Nos Estados Unidos o primeiro Centro de Vida Independente nasceu em 1972. No Reino Unido “a luta pelo direito à Vida Independente afirmou-se na década de 1980”. Em Portugal, o primeiro Centro de Vida Independente foi criado em Lisboa em 2015.
Fonte: Público
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