quarta-feira, 9 de maio de 2018

Porque é que demasiadas pessoas com deficiência vivem fechadas em casa?

Porque é que nunca se interrogam porque é que demasiadas pessoas com deficiência vivem fechadas em casa, como que aprisionadas, por não terem meios de se deslocarem nem transportes públicos adequados?

Pergunto-me muitas vezes porque é que os bloquistas e os geringoncistas, sempre tão amigos dos que eles acham que não têm voz (animais incluídos!) nunca param para defender as pessoas com incapacidades? Porque é que não fazem destas pessoas uma causa urgente? Porque é que lutam e gritam para que os animais sejam aceites em restaurantes e lugares públicos, por exemplo, quando sabem que nem todas as pessoas lá podem entrar? Porque ficam calados perante a multiplicação de espaços que não cumprem a lei das acessibilidades?

Porque não levantam a voz sempre que alguém portador de deficiência cai da sua cadeira de rodas por causa de uma rampa íngreme ou um passeio mal rebaixado? Porque não se incomodam quando alguém fica barrado à entrada de um museu ou de um café por não poder subir escadas e não ter acesso a uma casa de banho? Porque é que não se insurgem contra a falta de condições nas escolas e a falta de materiais de estudo para pessoas que não vêm e não ouvem? E porque é que nunca se interrogam porque é que demasiadas pessoas com deficiência ainda vivem fechadas em casa, como que aprisionadas, por não terem meios de se deslocarem, nem transportes públicos suficientes para as trazerem e levarem das suas necessárias voltas?

Sinceramente não percebo a discriminação que fazem, pois ignoram olimpicamente uma realidade que toca milhões de cidadãos, incluindo famílias e cuidadores. Têm a pretensão de serem inclusivos, mas não são. Incluem, sim, mas apenas os que lhes dão votos ou podem gerar lobbiespara defender ou assegurar os seus próprios interesses. Excluem ou pouco se importam com os que sofrem de doença mental, os que têm problemas de acessibilidade, os que são portadores de deficiência, os que de alguma forma vivem condicionados. Não está certo, não é sério e não faz sentido.

Abstraindo desta gente que diz preocupar-se com todos, mas só se preocupa com alguns, vale a pena determo-nos em realidades que nos interpelam pela lógica de superação e conquista que revelam. Falo de negócios que prosperam e de resultados que não se traduzem apenas em números, ou lucro financeiro. Existe desde 2003 uma cadeia de restaurantes em muitas capitais da Europa, que trabalham apenas com pessoas invisuais. Muitos conhecem ou já ouviram falar dos restaurantes “Dans Le Noir?” por ser uma experiência sensorial radical, muito para além da pura degustação gastronómica. Neste restaurantes os clientes têm uma experiência de cegueira e são convidados a confiar desde que entram até que saem.

Confiam nos empregados, todos eles cegos, confiam no chef, nos menus e nos pratos que lhes são servidos, confiam no espaço que não vêm, confiam nos barulhos e sons que ouvem, confiam nas vozes dos que os guiam e lhes ‘mostram’ o que podem comer e experimentar. Confiam nas pessoas com quem estão e confiam inclusivamente que ninguém ali vê absolutamente nada, aceitando ir sozinhos à casa de banho, por exemplo.

Esta cadeia de restaurantes, que nasceu com o objectivo de despertar a consciência para a cegueira, mas também como projecto de responsabilidade social que emprega invisuais e prova as suas capacidades a quem duvida que possam gerar lucro e gerir um negócio, factura milhões de euros por ano e marca de forma muito impressiva todas as pessoas que aceitam sair da sua zona de conforto ao reservar uma mesa para almoçarem ou jantarem. Ninguém sai igual ao que entrou. A experiência tem tanto de inquietante como de desafiante e exaltante. Uma vez vivida, nunca mais é esquecida.

Em Paris há agora o Café Joyeux, café-pastelaria onde trabalham pessoas com vários tipos de deficiência mental e os clientes são servidos por jovens com Trissomia 21, mas não só. O core business, ocoeur du coeurdesta marca é precisamente servir com o coração. No novíssimo Café Joyeux todos acreditam que ninguém é perfeito e há muita beleza na imperfeição. Os vídeos que existem na net, bem como a recente inauguração presidida por Brigitte Macron, primeira dama francesa, mostram a naturalidade com que todos circulam num espaço criado para incluir e para dar oportunidades profissionais a pessoas com handicaps mentais, que raramente têm a possibilidade de trabalhar, de evoluir e de serem justamente remunerados. E justamente olhados e reconhecidos por quem não sofre de qualquer doença ou incapacidade.

Em Portugal já vai havendo negócios lucrativos fundados exclusivamente para apoiar pessoas com deficiência. Estou a pensar na Livraria Déjà Lu, que conheço bem e só vende livros em segunda mão, todos eles doados por leitores e autores, cujas receitas revertem exclusivamente para a Associação Portuguesa de Portadores de Trissomia 21. Também esta livraria é um negócio lucrativo e escalável. Um modelo que se pode replicar em qualquer ponto dentro e fora do país, coisa que faz todo o sentido quando falamos de gerar lucro financeiro e não só, pois o lucro dos projectos de responsabilidade social também se medem pela quantidade de pessoas apoiadas nas comunidades.

Todos os pais com filhos portadores de deficiência ou com algum grau de incapacidade sofrem diariamente com a ideia da sobrevida dos seus filhos, pois naturalmente morrerão antes deles. Também lhes dói o impacto brutal da exclusão sempre que pensam no futuro que (não) lhes está reservado. Num país onde não abundam escolas preparadas para acolher crianças e jovens com doença mental e onde a transição para a idade adulta geralmente se traduz por ficar em casa, sem nada para fazer, os pais preocupam-se e muito. Legitimamente.

Um jovem adulto com deficiência ou incapacidade está quase sempre condenado a não poder ir para a universidade, a não encontrar trabalho e a perder os poucos amigos que foi conquistando ao longo da vida. O isolamento dos jovens adultos e a sua inactividade é muitas vezes regressiva e sempre profundamente desoladora para os próprios, mas também para os pais e famílias, ou quem os substitui.

Nesta lógica e porque está tudo por fazer, os pais vão-se associando e tendo inciativas que mudam o mundo, transformam a realidade e mudam o nosso olhar. Os políticos, decisores e legisladores podem não se deter perante a realidade das pessoas com incapacidade, mas os cidadãos avançam e dão passos de gigante. É impressionante.

Vejo isso na rapidez fulgurante com que apenas uma mãe conseguiu mobilizar uma equipa inteira, quase um movimento cívico, para organizar um concerto solidário no próximo dia 17, no auditório do Colégio Boa Nova, no Estoril. Artistas, músicos, produtores, realizadores e apresentadores foram desafiados a dar o seu melhor e a estar com gratuidade neste concerto pelas gerações solidárias. A ideia é dar a conhecer um novo projecto que está a germinar e, de certa forma, se pode comparar ao recém-inaugurado Café Joyeux.

O sonho da Associação Vila Com Vida é criar em Portugal espaços de café-bar onde também só trabalhem jovens adultos com déficit cognitivo e doença mental, proporcionando-lhes autonomia e realização pessoal e profissional. Em Paris, os fundadores do Café Joyeux inspiraram-se em Jean Vanier, filósofo canadiano radicado em França, fundador d’A Arca em 1964, hoje presente em 35 países. Jean Vanier, autor de vários livros, recebeu o prestigiado Prémio Templeton por ter dedicado toda a sua vida a pessoas com incapacidades e ter criado uma fabulosa rede de casas de dimensão familiar onde vivem, em comunidade, estas mesmas pessoas com os seus cuidadores e formadores (alguns deles voluntários).

Jean Vanier ainda está vivo e faz 90 anos em Setembro, mas já raramente sai de uma destas suas comunidades, onde também ele mora. Na semana passada chegou a Portugal uma embaixada de franceses para falar do que é A Arca. Vieram os que têm deficiências mentais e os que cuidam deles. O grupo passou cá uma semana e ficou até ao dia em que foi lançado o extraordinário livro-testemunho “Ouve-se um Grito”, tradução portuguesa de “Un Cri se Fait Entendre – Mon Chemin Vers La Paix”, de Jean Vanier. Conheci-os todos pessoalmente e ouvi-os falar e contar como é o seu quotidiano. Percebi que cada uma das pessoas com deficiência trabalha e ganha o seu dinheiro, gerindo a sua vida e o seu tempo com razoável autonomia, graças ao apoio incondicional dos especialistas e voluntários dedicados que também moram n’A Arca.

É difícil tirar conclusões nesta matéria e escrever resumidamente sobre um tema tão vasto, tão complexo e tão sensível, mas não é possível passar ao lado. Por isso aqui fica o meu elogio a quem abraça, a quem acolhe, a quem luta, a quem se entrega. Deixo Jean Vanier, na primeira pessoa:

“Ao longo da minha vida, foram pessoas com alguma deficiência intelectual que, pouco a pouco, me transformaram, libertando-me dos meus medos, revelando-me a minha própria humanidade. Depois dos terríveis atentados que atingiram a França, parece-me mais importante do que nunca dar o testemunho de uma fraternidade que é possível entre os seres humanos, de culturas, de religiões e de histórias diferentes. Nada está perdido.”

Fonte: Observador

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