quinta-feira, 14 de junho de 2018

Quem seria eu?


Há 40 anos o guarda Amadeu, depois de ter esgotado as munições da sua pistola, recarregou-a com um novo carregador. Esgotou de novo as munições e foi buscar uma G3 a um carro patrulha que, entretanto, tinha chegado.


Foi com essa G3 que me atingiu e mudou a minha vida.

Quem seria eu se o guarda Amadeu não fosse o filho da puta que era (ou será ainda)?

Eu tinha uma filha com 13 dias.

Tinha imaginado muita coisa que deixou de ser possível.
Passear no campo com ela. Explorar montes e vales. Correr na praia.

Quem seria eu hoje?

Seria o mesmo que era, mas… teria tido uma vida muito diferente.

Descobri nessa altura que a deficiência nos limita. Nos limita porque quando temos uma deficiência, ou a adquirimos, passamos à condição de cidadãos de segunda.

Cidadãos de segunda a quem são negados direitos tão básicos como o direito à educação, ao trabalho, à fruição das cidades, à vida. Em igualdade de circunstâncias com os “cidadãos de primeira”.

Pessoalmente nem me posso queixar porque fui um privilegiado. Acabei o curso, tive emprego.

Mas quem seria eu?

O mesmo que era, mas sem ter vivido muito do que poderia ter vivido se não andasse de cadeira de rodas.

Passados 40 anos, dou comigo a pensar no que não vivi. No que me impediram de viver. Das experiências que não tive.

Dos montes e vales que não percorri.

Das praias em que não corri com as minhas filhas.

É verdade, dei comigo a pensar no que poderia ter vivido se não fosse um cidadão de segunda, mas também dou comigo a pensar no tanto que há por fazer para que as pessoas com deficiência possam viver plenamente.

A fotografia tem 40 anos.
Era 10 de Junho, ao fim da tarde, no Hospital de Santa Maria.

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