domingo, 28 de outubro de 2018

Quotas para emprego de pessoas com deficiência ou incapacidade

Uma frase feita dizer-se que em Portugal temos excelentes leis mas péssimas práticas. Como todas as frases feitas, também esta tem uma parte de mentira.

A parte da verdade, isto é, a diferença entre a lei escrita e a lei na prática tem muitas causas. A desigualdade das relações sociais (no campo do trabalho, por exemplo, a imposição da vontade de uma das partes é o pão nosso de cada dia). O desconhecimento da lei por parte de quem poderia utilizá-la a seu favor. A ausência de fiscalização. As barreiras no acesso ao Direito e aos tribunais. Sem isto – liberdade, informação, fiscalização, acesso à justiça – as melhores leis são diariamente violadas. Ou seja, são letra morta.

Além destas razões, há uma outra que é responsabilidade direta de quem legisla: haver leis que são a proclamação de bons princípios que nunca são regulamentados. Quem legisla gosta de fazer boa figura e de ficar de consciência tranquila. Mas quando a lei é só proclamação, a realidade fica frequentemente imune aos seus efeitos.

Era esta a situação da lei sobre as quotas para emprego de pessoas com deficiência ou incapacidade. Toda a gente reconhece que a integração laboral é uma condição essencial de combate à pobreza e à desigualdade, mas a taxa de desemprego entre pessoas com deficiência ou incapacidade continua a ser muito superior à média da população em geral (ronda os 30% em geral, mas chega a ser de quase 70% nas idades mais jovens) .

No caso da Administração Pública, uma lei de 2001 já definia que, em cada novo concurso, 5% das vagas devia ser destinada a este público (em concursos entre 3 e 10 trabalhadores, pelo menos uma vaga), sendo preenchidas por outras pessoas apenas caso ninguém com deficiência se apresente. Desde então, fez-se algum progresso, mas pouco: há cerca de 15.500 trabalhadores com diversidade funcional na Administração Pública, um pouco mais de 2%. Entre outras coisas, o congelamento de novas admissões e concursos tem limitado grandemente o alcance desta norma.

No setor privado, é muito pior. Calcula-se que sejam cerca de 8500 pessoas nesta condição, o que daria uma percentagem mínima dos trabalhadores por conta de outrem (menos de 0,1%). Acontece que, desde 2004, a lei aponta como objetivo uma quota entre 1% a 2% de emprego de pessoas com incapacidade superior a 60% no privado. Passados 14 anos, não mudou quase nada. Uma das razões é porque essa lei nunca foi regulamentada: a proclamação de princípio não foi acompanhada nem da definição de quais as empresas com esta obrigação, de um prazo para a meta ser cumprida, de apoios e sanções para quem não a respeitasse, de como regular as exceções. Nada.

É isso que muda com uma nova lei que será aprovada na próxima terça-feira no Parlamento, e que já teve luz verde numa votação da Comissão de Trabalho. Trata-se de uma iniciativa do Bloco, que depois deu origem a um texto conjunto negociado com o PS e que teve também o apoio do PCP (PSD e CDS abstiveram-se). O que diz? Define o universo das empresas que têm essa obrigação legal (empresas médias, entre 75 a 250 trabalhadores, têm de ter 1% de trabalhadores com deficiência; grandes empresas, com mais de 250, devem preencher a quota de 2%). Define um método para chegar lá (em cada ano a partir da entrada em vigor da lei, 1% obrigatório em todos os novos recrutamentos) e um prazo para atingir o objetivo (5 anos para médias empresas; 4 anos para as grandes). Define o modo de funcionamento dos concursos (obrigação de haver provas adaptadas, com o apoio do Instituto Nacional de Reabilitação). Estabelece o dever de informação (é muito importante ter dados fiáveis, que hoje não existem) e regula as exceções (a lei tem de as prever, também). Define as contraordenações (entre 600 e 10 mil euros, dependendo do volume de negócios da empresa; e a possibilidade de não poder participar em concursos e arrematações públicas, se o incumprimento for reiterado) e um mecanismo de avaliação, de 3 em 3 anos.

A abstenção da direita apoiou-se numa justificação: para quê um caminho punitivo em vez de “apoiar as empresas”? Acontece que os apoios à contratação de trabalhadores com um grau elevado de incapacidade (claro que estes termos são eles próprios estranhos: incapacidade de quê?; a percentagem mede mesmo o quê?) já existem há anos, e bem, e não acabam com esta lei. O IEFP prevê, por exemplo, um apoio de 4246 euros a uma empresa que contrate uma pessoa desempregada com deficiência. As empresas podem ter uma redução da TSU de 23,75% para 11,9% nestes casos. E, entre outras coisas, podem candidatar-se a receber apoio para adaptarem os postos de trabalho (incluindo ao nível das barreiras arquitectónicas), recebendo até 6862 euros para isso. Mas mesmo assim, continua residual o número destes trabalhadores com emprego. Ou seja, os incentivos não têm chegado e muitas vezes as verbas previstas até ficam por gastar. É preciso associar apoios com obrigações.

Sozinha, nenhuma lei muda a realidade de um momento para o outro. Mas o que foi conseguido esta semana pode ser um passo de gigante, se for bem aplicado. Tendo em conta que em Portugal há cerca de 1000 grandes empresas que empregam 800 mil pessoas, estamos a falar, só aqui, de 16 mil postos de trabalho que podem incluir pessoas com diversidade funcional. Nas médias empresas, poderia chegar aos 5 mil. Claro que o caminho vai demorar a percorrer. Mas um Pingo Doce, que tem lucros tão elevados e mais de 25 mil trabalhadores, não consegue cumprir uma quota de 500? E numa empresa com 100 pessoas, é assim tão difícil que haja uma vaga (uma!) para pessoas com deficiência?

Não é. E para cada uma das pessoas concretas em causa, ter emprego faz toda a diferença. Sobretudo quando a vida já é dificultada por tudo o resto.

Por José Soeiro no SOL

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