Ouvir um pai falar publicamente de um dos seus filhos e ficar com a voz embargada, sem palavras, por não saber como exprimir toda a sua gratidão pelo valor que este filho lhe acrescenta, é muito comovente e profundamente interpelador. Aconteceu na semana passada, perante uma plateia repleta de académicos e pensadores, alunos e professores, homens de negócios, sócios de grandes sociedades, directores, gestores e economistas estratégicos no mundo corporativo, mas também no universo das start-ups e organizações não governamentais.
Toda esta gente se reuniu ao fim da tarde no grande auditório da Reitoria da Universidade Nova de Lisboa, no campus de Campolide, para o lançamento do Inclusive Community Forum – Center of Leadership for Impact, o novíssimo projecto que a Nova School of Business and Economics (Nova SBE)
abraçou com diversos parceiros. O auditório transbordou de tal maneira que havia pessoas sentadas em todos os degraus da longa e larga escadaria. A multidão impressionou pelo interesse na causa, traduzido ali no facto de cada um dos presentes ter atravessado a cidade debaixo de chuva torrencial, de forma a não falhar esse momento inaugural.
Rui Diniz, economista, consultor, ex director da McKinsey, actual Administrador da José de Mello Saúde e pai de 5 filhos, foi também o pai deste Inclusive Community Forum. Contou como tudo começou, e como o nascimento deste projecto cruza a sua história pessoal. Por duas vezes ficou sem palavras e sem conseguir sequer nomear o filho que adoptou e mudou toda a sua vida familiar e profissional.
Bernardo, o bebé que o casal Carmo e Rui adoptaram há 5 anos, tinha 3 anos quando lhes foi entregue e, nesse mesmo dia, tornaram-se pais de 5 filhos, dois deles exactamente da mesma idade. Acontece que entre estas duas crianças não existiam quaisquer semelhanças em matéria de desenvolvimento, uma vez que o Bernardo não via, não falava, não andava, tinha um grave atraso no desenvolvimento e tinha-lhe sido atribuída uma incapacidade de 99,5%.
Para o comum dos mortais, a possibilidade de adoptar uma criança com apenas meio por cento de capacidades seria impensável, sobretudo quando já existem 4 filhos menores em casa. Nem a Carmo nem o Rui tiveram medo de arriscar e deram o passo depois de um discernimento feito, primeiro em casal, e depois alargado à família. O Bernardo chegou a casa e nunca mais nada nem ninguém foi como era até ali. Um bebé que depende de todos, para tudo, altera imperativamente as rotinas, mas também muda para sempre a perspectiva com que se vive a vida.
Passados 5 anos, o Bernardo continua sem ver e pouco fala, mas já consegue andar com ajudas e apoios, e aos 8 anos é uma criança feliz e fácil que não deixa ninguém indiferente. A sua evolução e o quotidiano destes pais e destes filhos são uma história que fica a fazer eco nas nossas histórias.
– Dizem que o valor acrescentado de crianças como o Bernardo é muito reduzido, mas eu pergunto: quem é que mais contribui para a sociedade? Os mais inteligentes? Os mais competentes? Os mais artistas? Os mais desportistas? Pois eu digo que o Bernardo muda o mundo e a sua força mobilizadora é de tal ordem, e tão extraordinária, que foi graças a ele que nasceu o Inclusive Community Forum – Center of Leadership for Impact.
Se isto não é contribuir para a sociedade e ter impacto real na comunidade, então ninguém sabe avaliar quem realmente importa e quem mais dá. Rui Diniz nunca diria isto que acabo de escrever, naturalmente, mas bastou ouvi-lo e ficar a conhecer melhor as circunstâncias que deram origem ao projecto inclusivo para perceber a medida do contributo de seres humanos como o Bernardo. Com toda a sua imperfeição, todas as suas incapacidades e limitações, é a ele que se deve uma iniciativa que ainda agora foi projectada, mas já deixa antever todo o alcance e potencial que encerra.
Daniel Traça, Director da Nova School of Business and Economics (Nova SBE), acredita que é na sala de aula das universidades e escolas que se aprende e treina a capacidade de criar projectos com impacto real na sociedade.
– Todos os problemas são resolúveis se nós trouxermos ideias para os resolver!
Daniel Traça, juntamente com Pedro Santa-Clara e a imensa equipa que constitui a Nova SBE e a vai levar ao fabuloso novo campus de Carcavelos já a partir de Setembro, apostam em envolver a academia em projectos inclusivos porque sabem que não podemos ficar à espera que os universitários saiam das universidades para começarem a fazer a diferença no mundo real. É preciso formar alunos e activar neles, ainda enquanto estudantes, a mola interior que lhes permite darem saltos em altura e em comprimento através de iniciativas que promovem o desenvolvimento das comunidades.
Nesta lógica e com este sentido, o Inclusive Community Forum é uma forma de passar das teorias à prática, pois cada ano de existência deste Forum será dedicado a um tema específico que será investigado, analisado, estudado, estruturado e documentado de forma a chegar a resultados concretos e projectos inclusivos que podem ser replicados e escalados.
Neste primeiro ano o tema é a empregabilidade das pessoas com deficiência e o desafio é identificar barreiras a esta mesma empregabilidade, tentando perceber porque é que, por um lado, não existem mais empresas abertas à contratação de pessoas com deficiência e, por outro, porque é que estas mesmas pessoas e as suas famílias também não procuram activamente entrar no mercado de trabalho.
Claro que uma coisa vai com a outra, mas é importante identificar obstáculos e desafiar as organizações e instituições a porem todo o seu potencial ao serviço da comunidade, nomeadamente valorizando os talentos e competências das pessoas que por serem portadoras de deficiência vivem numa lógica de superação diária. As provações por que passam dia após dia dão-lhes um endurance e uma capacidade de se transcenderem que muitos outros, sem qualquer handicap, não têm. E esta atitude de superação merece ser validada e posta ao serviço, seja em empresas grandes ou pequenas.
Finalmente, o Inclusive Community Forum – Center of Leadership for Impact também foi criado para fazer uma cartografia afinada de boas soluções. Existe para isto mesmo: para identificar barreiras e coleccionar boas práticas de forma a poder analisar umas e outras, trabalhar sobre elas e resolver questões concretas que se põem às pessoas com deficiência, às suas famílias e cuidadores.
Nada é mais angustiante para um pai ou uma mãe de um filho com deficiência do que a certeza da sua própria morte, pois a sobrevida dos filhos e os anos que hão-de viver sem o seu apoio e a sua protecção levanta terríveis interrogações. Saber quem vai cuidar deles, quem os vai acompanhar, de que poderão viver e qual o grau de autonomia a que poderão chegar são interrogações radicalmente importantes para estes pais, mas também para todos nós.
Quanto maior e melhor for a empregabilidade destas pessoas, mais autónomos e mais realizados serão. Sobre isto não restam dúvidas. E termino com outro testemunho que também nos embargou a voz e deixou comovidos. Foi dado por Inês Oom de Sousa, Adminstradora do Santander que conta com vários profissionais com deficiência nas suas equipas.
– Conheço a alegria com que entram no trabalho pela manhã e sei a importância que a sua realização profissional tem para cada um deles.
São extraordinariamente competentes e vejo-os chegar muito cedo, acompanhados das mães, dos pais ou de outros cuidadores, e lembro-me de uma desta pessoas me ter contado no primeiro dia na empresa que acordou de madrugada, em sobressalto, por não querer chegar depois da hora. O entusiasmo era tal que acordou o irmão e a casa toda com esse mesmo argumento: eu sei que é muito cedo, mas é melhor irmos andando porque não quero chegar atrasada ao trabalho!
Até hoje esta pessoa nunca chegou atrasada ao trabalho, mas nós ainda corremos muitas vezes o risco de acordar demasiado tarde para uma realidade que é nossa, de todos. Graças ao Bernardo, aos seus pais, a quem os conhece e apoia o Inclusive Community Forum, temos agora este comboio rápido para apanhar e chegar a horas.
Por Laurinda Alves no Observador
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