Caro Presidente da Câmara Municipal de Lisboa,
Neste tempo de estaleiro e obras, neste caos que atravessa várias avenidas, ruas e artérias da cidade, antecipando já o inferno que se segue quando começar o mau tempo e o trânsito ficar ainda mais demorado do que já está, não consigo não lhe escrever uma carta aberta. Por muitas razões, mas em especial por nesta semana ter sido inundada de testemunhos reais brutais, relatos em primeira primeira mão, de pessoas com mobilidade reduzida ou altamente condicionada por serem cegos ou portadores de outras deficiências. Fui inundada de escritos por eu própria ter escrito uma crónica neste mesmo jornal sobre a necessidade imperativa de calçarmos os sapatos uns dos outros. Mais precisamente, sobre a urgência de nos sentarmos em cadeiras de rodas para tentarmos perceber como vivem e o que sofrem todos os que se deslocam desta forma dia após dia, durante vidas inteiras.
Entre esses relatos, houve um que gritou mais alto e continua a gritar, num eco quase insuportável que me faz ter este impulso de lhe escrever, tentando pousar directamente sobre a sua secretária, no seu gabinete, uma carta que não se perca nos labirintos administrativos, por assim dizer.
Ainda antes mesmo de lhe dizer o que gostava de dizer, validando o que de bem tem feito fazer nesta cidade, mas pedindo também que ouça estes e outros gritos, começo por transcrever o testemunho de Carlos Nogueira, 49 anos, paraplégico desde os 14 meses depois de ter tido poliomielite em virtude de não ter sido vacinado, devido a uma ruptura de stock de vacinas. Vivia no interior de Angola.
“Certa noite, depois de cumprir a minha jornada de trabalho e de assistir às aulas na universidade em regime pós laboral, cheguei a casa (na minha anterior morada) por volta das 00h00. Estava cansado e a desejar cair na cama para recuperar forças e repetir a dose no dia seguinte. Chovia muito e ao chegar junto à porta do meu prédio verifico que mais uma vez o lugar de estacionamento que me estava reservado pela CMLisboa se encontrava ocupado. Acontece quase todos os dias, mas naquela noite, como se não bastasse, tinha dois carros estacionados em frente, à entrada do prédio, que, de tão próximos, apenas deixavam entre si espaço para passar uma pessoa em pé.
Ora, a minha cadeira de rodas mede 60cm de largura pelo que dei comigo a perceber que, se calhar, teria que ficar na rua naquela noite em que chovia torrencialmente…
Liguei para a PSP da área, de onde me responderam não ser possível fazer nada porque àquela hora não tinham reboques disponíveis para resolver a situação e nem sequer foram autuar os infractores. Chovia demais para isso, talvez.
Pensei ligar à minha irmã ou a um vizinho para me ajudarem, mas entre os vários telefonemas para a PSP, passou mais de hora e meia, já era tarde e achei que não devia incomodar pessoas que também tinham compromissos no dia seguinte e a necessidade e o direito ao seu repouso. Ali fiquei dentro do carro sem saber o que fazer, já com as lágrimas a correrem cara abaixo…
Reagi e optei por ir estacionar o carro longe de casa (onde encontrei lugar) e vir de cadeira de rodas, com a dificuldade agravada de ter de andar num piso de calçada. Lá consegui chegar junto da entrada do meu prédio completamente encharcado pela chuva e pelas lágrimas que não parava de chorar. Ali chegado, ainda tinha que vencer um último obstáculo: os dois carros estacionados em frente da porta.
De que forma o fiz? Da única possível: desci da minha cadeira para o chão, rastejei entre os dois carros a tentar nunca largar a cadeira de rodas, arrastando-a sempre comigo, depois consegui encontrar maneira de a elevar de forma a conseguir passá-la, à força de braços, por cima dos carros, tudo isto sempre debaixo de chuva intensa, até que finalmente consegui voltar a sentar-me na cadeira. Acho que ninguém imagina o esforço de ter de subir do chão para uma cadeira de rodas contando unicamente com os braços.
Consegui finalmente entrar no prédio, com a roupa suja e rasgada, ferido de uma raiva incomensurável. Naquele momento senti que, para as autoridades do meu país, não passava de um número que só tem peso na hora de ser chamado a honrar as suas responsabilidades perante um estado que o ignora e lhe vira as costas todos os dias!”
O que me faz escrever é isto, Senhor Presidente. É saber que episódios como este são recorrentes, diários, numa cidade como Lisboa, onde cidadãos e autoridades nem sempre cumprem os seus papéis. Uns porque insistem em estacionar os carros onde não devem, outros porque aparentemente se esquecem de fiscalizar o que deviam.
Todos os testemunhos que recebi me fizeram ligar de volta a quem enviou contactos, mas também a outras pessoas com mobilidade reduzida que vivem apostadas em tentar melhorar as condições de vida nesta cidade. A boa notícia é que todos reconheceram que a cidade está muito melhor. Nos últimos anos aconteceram coisas extraordinárias em Lisboa, muito para além da emblemática sucessão de passadeiras rebaixadas, com piso tactil, no perímetro da Av. Alexandre Herculano, que realmente permitem a cegos e a pessoas em cadeiras de rodas circularem com mais conforto. Falo de passeios mais largos e caminhos alternativos espalhados por vários pontos da cidade que já permitem ou vão permitir que muitas pessoas os possam percorrer com mais conforto e liberdade.
Mas há tanto por fazer, que não podemos descansar nem um segundo. As autoridades camarárias têm absolutamente que vigiar melhor e multar mais as pessoas que estacionam indevidamente nos lugares prioritários ou para deficientes. A EMEL, que carrega consigo vários odiosos, tem que ser capaz de assegurar que ninguém ocupa indevidamente estes espaços e, neste zelo, provar que é mais pelos cidadãos do que contra eles. E mais, os passeios mal rebaixados têm que ser milimetricamente revistos e rapidamente refeitos, pois como escrevi na crónica anterior provocam quedas e fracturas expostas. À população em geral, mas acima de tudo a pessoas para quem uma ferida facilmente se transforma em escara e demora meses a cicatrizar. Meses de paralisia, frustração e desespero, como deve imaginar.
Não sei como nem quando acabarão todas estas obras em curso, mas à vista desarmada estamos mais que a tempo de vistorias detalhadas para verificar se cumprem os requisitos da livre acessibilidade. Pode garantir que isso acontece?
Quanto a transportes públicos, Senhor Presidente, estamos ainda pior que os passeios e as falsas rampas: no Metro os elevadores e escadas rolantes estão demasiadas vezes avariados; nas ruas os autocarros chegam e partem, sucedendo-se durante longas horas, sem terem condições para serem utilizados por pessoas em cadeira de rodas, porque os sistemas de elevação estão invariavelmente estragados. Ou seja, pessoas com necessidades especiais e sem carro próprio esperam e desesperam diariamente no Metro e nas paragens de autocarro, sem saberem o que fazer. Como A CP exige telefonemas diários e longos tempos ‘on hold’ para marcar idas e voltas em cadeiras de rodas e os transportes alternativos para deficientes também não chegam para as solicitações, tudo isto é altamente erosivo e devastador.
Mais coisas, Senhor Presidente? Os restaurantes! Os restaurantes baratos e caros que já existem ou acabam de abrir portas e nunca têm rampas nem casas de banho acessíveis. E os monumentos e edifícios públicos, sempre que se revelam inacessíveis e fazem bradar aos céus. E o pavimento das ruas! Não tendo V.Exª culpa nenhuma da calçada portuguesa que tanta beleza acrescenta a Lisboa, mas também tantas dores de cabeça (e pernas e braços) dá a quem nela escorrega e cai, acha que pode fazer o favor de atender às queixas mais que legítimas dos cidadãos que não podem percorrer livremente zonas recém-recuperadas como a Ribeira das Naus e outras, por ter sido ali colocado um piso altamente trepidante (e inseguro até para motas, dadas as pedras arredondadas que marcam o eixo da via) e não terem sido acautelados certos preceitos que possibilitariam uma melhor circulação. Sei que sabe que a trepidação da calçada aumenta exponencialmente os espasmos, dores e desconfortos dos deficientes e, por saber que sabe isso, fico um pouco mais descansada.
Termino esta carta aberta, que para si já vai longa, mas para mim e certamente para todos os que sofrem as vicissitudes de uma cidade de mobilidade difícil, ainda só vai no início. E termino partilhando consigo, enquanto cidadã, as responsabilidades que nos cabem. A uns, gritar, a outros amplificar esses mesmos gritos e a outros tomarem as decisões certas para evitar mais sofrimentos desnecessários.
Laurinda Alves no Observador
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