Nina ainda é um projeto de cão de assistência: está em formação há um ano, passa meses na escola a ser treinada para poder ajudar a Diana no seu dia a dia, e ainda deve precisar de mais um ano de treino, realizado pela Associação Portuguesa de Cães de Assistência (APCA), que já formou seis exemplares para pessoas com diferentes patologias clínicas – e está a iniciar a formação de mais oito. O animal veste um colete amarelo fluorescente, onde se pode ler “cão de assistência” e “não tocar”.
Diabetes, autismo, epilepsia e deficiências motoras ou mentais são algumas das situações para as quais estes cães de serviço, ou medical dogs, podem ser treinados. São companheiros de quatro patas que podem realizar tarefas simples, mas essenciais, como abrir e fechar portas, amparar quedas, prevenir ataques epiléticos através da identificação de alterações hormonais, detetar alterações de níveis de glicemia (principalmente as hipoglicemias) em pessoas diabéticas ou até servir de desbloqueadores sociais para crianças com autismo.
Diana Niepce é uma das poucas pessoas em Portugal que tem um destes cães ao seu serviço: a Nina foi-lhe oferecida pela associação através de donativos. Mas nem todos têm essa sorte, o que se torna uma dificuldade quando em Portugal “mais de 70% ou 80% das pessoas não dispõem de condições financeiras para adquirir um cão de assistência”, garante ao Expresso o presidente da APCA, Rui Elvas. É o caso de João Timóteo, de 20 anos, que ficou paraplégico há um.
“Temos neste momento cerca de 350 pedidos aos quais não podemos dar resposta”, esclarece Rui Elvas, explicando que a associação que dirige tem suportado a maioria dos encargos com fundos próprios. Foi por esse motivo – para que cada vez mais pessoas como João consigam aquilo que Diana alcançou – que a APCA tem a correr, até esta sexta-feira, 21, uma campanha de crowdfunding na plataforma PPL, com o objetivo de angariar 2 500 euros em donativos, um valor simbólico que permitirá apenas ajudar algumas pessoas na aquisição de dois, três ou quatro cães. Esta quarta-feira, faltava apenas angariar €104.
A minha vida está cheia de pequenas lutas diárias. Pequenas barreiras que tenho que ultrapassar. Já as ultrapassava sozinha, com força de vontade e disciplina, mas agora posso contar também com a ajuda da Nina. Neste momento, a Nina ainda está a ser treinada, e às vezes vai para a escola durante um mês ou dois, mas o objetivo é que ela me acompanhe no meu dia a dia, tornando-o mais funcional. Porque eu demoro muito tempo a fazer as coisas.
Todas as manhãs levanto-me e vou à fisioterapia. Vou numascooter para pessoas com mobilidade reduzida e ela, quando não está na escola, vem ao meu lado. Todas as pequenas coisas em que a Nina me puder ajudar fazem uma diferença enorme. Como? Bem, no caminho para a fisioterapia, normalmente, tenho uma rampa pequenina que tenho que subir, e depois da rampa há uma porta para empurrar mas que não se segura sozinha... E aí a Nina pode ajudar-me, a amparar as minhas quedas ou a abrir e segurar portas. Ela agora volta para casa (ainda está em treino), mas o objetivo – quando estiver completamente treinada – é que fique comigo na fisioterapia, para ajudar a minha marcha e amparar-me caso eu me desequilibre e caia.
A Nina também está a ser treinada para pôr a roupa na máquina de lavar e a secar ou lavar a loiça – se não roer a esponja, que é o meu maior problema neste momento. Abrir e fechar portas, acender as luzes que estão muito altas, chamar um elevador, pôr produtos, aos quais não chego, no carrinho do supermercado. São coisas que estão fora do meu alcance – algumas delas que fui procurando alcançar através de força de vontade e disciplina.
Disciplina. A disciplina da dança foi-me incutida desde pequenina: sou bailarina e acrobata. Mas mantê-la firme não é fácil, especialmente hoje em que a maioria dos dias não são cor de rosa: é muito difícil recuperar de uma lesão tão grave como a que eu tive.
Porque eu parti o pescoço. E fiquei totalmente paralisada.
Tudo aconteceu num trapézio, esse mesmo que me ensinou a força da mente e da disciplina. Caí de um em março de 2014, fraturei a cervical, mas aos poucos fui aprendendo a levantar-me. No início, foi bastante violento. A ideia de que estás dependente de outras pessoas para fazer a tua vida no dia a dia consegue ser bastante violenta. Os médicos diziam que eu nunca conseguiria andar, que iria ficar um vegetal, deitada numa cama. Tinha 1% de probabilidade de voltar a andar. Agarrei esse 1%. “Ai é, não consigo? Então vais ver.” Toda a minha vida travei esta batalha entre o “eu já consigo fazer isto” e o “eu ainda não consigo fazer aquilo”. Tentava que ganhasse o primeiro. Agora, já consigo mexer os braços e dar pequenos passos com o andarilho, se o piso for completamente liso.
Hoje, é essa mesma disciplina que quero incutir na Nina. A Nina é um cão de assistência ou medical dog, como lhe quiserem chamar. Foi-me oferecida pela APCA, através de donativos. Tive sorte. Se não fosse assim não a conseguiria ter: o treino de um cão de assistência pode ir de sete mil a 12 mil euros e as nossas pensões de invalidez são de 200 euros mensais. Não é fácil, porque a maioria do equipamento ortopédico tem valores estapafúrdios.
Mas eu tive sorte e não estou a suportar os custos do treino da Nina. Ela está em formação há um ano, mas deve precisar de pelo menos mais um. Esta raça é muito bonita, mas não é fácil de treinar: se não lhes dermos ordens eles fazem o que quiserem, facilmente nos dão a volta. São cães irrequietos e muito inteligentes. E eu, estando numa cadeira de rodas, nem sempre consigo travá-la ou controlá-la.
Enfim, se calhar não escolhi a raça mais funcional. Mas não consigo imaginar a minha vida sem a Nina. Dá-me segurança. E veio preencher uma lacuna na minha vida: os nossos amigos, os nossos namorados ou ex-companheiros seguem a vida deles, mas nós estamos muito mais limitados, em casa ou na fisioterapia, passamos bastante tempo em hospitais... E a Nina apareceu com um amor incondicional, que eu não posso exigir dos meus amigos ou das pessoas que me são queridas. Ela está sempre ali para mim.
JOÃO TIMÓTEO, 20 ANOS: “GASTAR MAIS DE SETE MIL EUROS COM UM CÃO É IMPENSÁVEL”
Até junho deste ano eu não sabia que existiam cães de assistência. Claro que já tinha visto no metro pessoas que, por não conseguirem ver, eram guiadas por cães, mas achava que estes existiam apenas para pessoas com cegueira. Conhecer a Diana Niepce abriu-me o pensamento: é muito mais vasta a ajuda que podem dar.
Conheci-a logo no primeiro dia do meu segundo internamento em Alcoitão. Lembro-me bem desse 16 de junho deste ano. Estava a almoçar com a minha mãe e um amigo, e a Diana estava lá a fumar um cigarro e começou a falar connosco. Perguntou-me se eu tinha entrado naquele dia... E falou na cadela. Ela fala imenso na Nina, adora-a, porque encontrou ali um porto de abrigo. Como se fosse uma irmã que sempre esteve presente: tem-na ajudado a fazer aquilo que não consegue, trouxe-lhe outras amizades (como a treinadora, por exemplo)... E a Diana deixou de falar naquilo que antes não conseguia fazer, mas no que passou a conseguir.
Lembro-me perfeitamente de estarmos um dia à entrada de Alcoitão e, de repente, chegar o namorado da treinadora com a cadela. A Diana esboçou de imediato um sorriso enorme, como se fosse chorar. Fiquei com vontade de ter um cão destes, não tanto no sentido de passar a fazer algo que não conseguia, mas por causa da alegria dela. Acho que os maiores entraves não estão muitas vezes no nosso corpo mas na cabeça, nas emoções...
Sempre gostei de desafios, não de facilidades. De repente e sem aviso prévio, a vida colocou-me vários para ultrapassar. Foi a 23 de outubro de 2015. Nesse dia, fui de manhã cedo estudar para a universidade, queria passar a umas 'cadeiras' que tinha deixado para trás. Nessa altura, costumava ficar na faculdade de manhã à noite a estudar e foi o que fiz. Fiquei ainda para a noite, para uma festa que existia na universidade. Não bebi, mas quando regressei a casa estava com sono. Quando voltava, na saída para o Pinhal Novo (onde vivia na altura), passei por uma rotunda. Não me lembro de mais nada, só de acordar em dezembro numa cama de hospital. Aí, soube o que se tinha passado. Tinha adormecido e chocado contra uma paragem de autocarro, num acidente que deixou para sempre a sua marca no meu corpo: uma contusão medular e um traumatismo craniano. Parti o pescoço e fiquei com uma lesão do tronco para baixo.
Logo no primeiro fim de semana em casa, depois de sair do hospital, deparei-me com a primeira dificuldade: não me conseguia vestir. Comecei a testar-me, a procurar formas alternativas de atingir esse objetivo. Depois, vieram as manobras. Como passar com a cadeira de rodas numa passagem estreita? Como chegar a sítios altos? Já consigo muito mais do que há um ano, mas um cão poderia ajudar a simplificar o meu dia a dia. Por exemplo, já me aconteceu passar da cadeira para a cama e deixar a luz ligada. É um grande esforço, que implica que eu tenha que passar novamente para a cadeira, ajeitar as pernas, pôr os pés nos pedais, ir apagar a luz e fazer novamente o processo inverso – só a passar da cama para a cadeira demoro três ou quatro minutos. Mas não desespero: eu não preciso de ser rápido, preciso é de conseguir.
Depois, sair à rua é também um desafio. A calçada portuguesa é muito bonita, mas não é feita para pessoas que andam numa cadeira de rodas. Talvez um cão de assistência me possa ajudar a encontrar os melhores caminhos, mesmo quando voltar a pegar num carro, o que espero voltar a fazer em breve para ir para a universidade. Ir de transportes públicos não é viável (a Cidade Universitária não está adaptada para cadeiras de rodas), por isso quero tentar arranjar um carro e adaptá-lo. Se tenho medo de voltar a conduzir? Não, mas confesso que tenho algum receio daquilo que vou sentir quando pegar num carro.
Um cão de assistência seria aqui uma ajuda preciosa. Pode ajudar-me a estacionar e a ver os ângulos mortos. Pode guiar-me quando estou na cadeira de rodas, para não ficar entalado. É esta a mais-valia destes cães: saberem aquilo de que necessitamos. Não sei como o fazem, mas são treinados para isso. Gostava muito de ter um, embora ainda não tenha enviado o meu pedido à APCA. Tenho primeiro que tratar de um mundo de burocracias, no qual uma pessoa entra quando fica paraplégica: ir à junta médica para determinar o grau de paralisia (e ter direito a uma cadeira de rodas, porque agora ando com uma emprestada), tratar do regresso à faculdade, de adaptar o carro... Além disso, gastar mais de sete mil euros por um cão destes é impensável. Sei que neste momento não o vou conseguir.
Lembro-me perfeitamente de estarmos um dia à entrada de Alcoitão e, de repente, chegar o namorado da treinadora com a cadela. A Diana esboçou de imediato um sorriso enorme, como se fosse chorar. Fiquei com vontade de ter um cão destes, não tanto no sentido de passar a fazer algo que não conseguia, mas por causa da alegria dela. Acho que os maiores entraves não estão muitas vezes no nosso corpo mas na cabeça, nas emoções...
Sempre gostei de desafios, não de facilidades. De repente e sem aviso prévio, a vida colocou-me vários para ultrapassar. Foi a 23 de outubro de 2015. Nesse dia, fui de manhã cedo estudar para a universidade, queria passar a umas 'cadeiras' que tinha deixado para trás. Nessa altura, costumava ficar na faculdade de manhã à noite a estudar e foi o que fiz. Fiquei ainda para a noite, para uma festa que existia na universidade. Não bebi, mas quando regressei a casa estava com sono. Quando voltava, na saída para o Pinhal Novo (onde vivia na altura), passei por uma rotunda. Não me lembro de mais nada, só de acordar em dezembro numa cama de hospital. Aí, soube o que se tinha passado. Tinha adormecido e chocado contra uma paragem de autocarro, num acidente que deixou para sempre a sua marca no meu corpo: uma contusão medular e um traumatismo craniano. Parti o pescoço e fiquei com uma lesão do tronco para baixo.
Logo no primeiro fim de semana em casa, depois de sair do hospital, deparei-me com a primeira dificuldade: não me conseguia vestir. Comecei a testar-me, a procurar formas alternativas de atingir esse objetivo. Depois, vieram as manobras. Como passar com a cadeira de rodas numa passagem estreita? Como chegar a sítios altos? Já consigo muito mais do que há um ano, mas um cão poderia ajudar a simplificar o meu dia a dia. Por exemplo, já me aconteceu passar da cadeira para a cama e deixar a luz ligada. É um grande esforço, que implica que eu tenha que passar novamente para a cadeira, ajeitar as pernas, pôr os pés nos pedais, ir apagar a luz e fazer novamente o processo inverso – só a passar da cama para a cadeira demoro três ou quatro minutos. Mas não desespero: eu não preciso de ser rápido, preciso é de conseguir.
Depois, sair à rua é também um desafio. A calçada portuguesa é muito bonita, mas não é feita para pessoas que andam numa cadeira de rodas. Talvez um cão de assistência me possa ajudar a encontrar os melhores caminhos, mesmo quando voltar a pegar num carro, o que espero voltar a fazer em breve para ir para a universidade. Ir de transportes públicos não é viável (a Cidade Universitária não está adaptada para cadeiras de rodas), por isso quero tentar arranjar um carro e adaptá-lo. Se tenho medo de voltar a conduzir? Não, mas confesso que tenho algum receio daquilo que vou sentir quando pegar num carro.
Um cão de assistência seria aqui uma ajuda preciosa. Pode ajudar-me a estacionar e a ver os ângulos mortos. Pode guiar-me quando estou na cadeira de rodas, para não ficar entalado. É esta a mais-valia destes cães: saberem aquilo de que necessitamos. Não sei como o fazem, mas são treinados para isso. Gostava muito de ter um, embora ainda não tenha enviado o meu pedido à APCA. Tenho primeiro que tratar de um mundo de burocracias, no qual uma pessoa entra quando fica paraplégica: ir à junta médica para determinar o grau de paralisia (e ter direito a uma cadeira de rodas, porque agora ando com uma emprestada), tratar do regresso à faculdade, de adaptar o carro... Além disso, gastar mais de sete mil euros por um cão destes é impensável. Sei que neste momento não o vou conseguir.
OS CÃES DE ASSISTÊNCIA EM PORTUGAL
As raças mais comuns
Golden Retrievers, Labrador Retriever, Pastor Alemão, Jack Russel e Labradoodles são as raças mais comuns para treinar cães de serviço. A APCA é a única entidade certificadora em Portugal de cães de assistência na área dos medical dogs. Além desta, existem a Aguiar da Beira (cães-guia, para pessoas com deficiências visuais) e Animas (cães para surdos, para pessoas com surdez, e cães de serviço, para pessoas com deficiência mental, orgânica ou motora).
Aquisição, treino e certificação
Os valores de aquisição, treino e certificação de um medical dogpodem variar entre os sete e os 14 mil euros, o que faz com que muitas pessoas não tenham possibilidade de os adquirir.
Como sublinha o presidente da APCA, Rui Elvas, em Portugal existe “um acordo com a Segurança Social para os cães-guia, no qual o Estado comparticipa 55% da formação, mas não para os cães de serviço (medical dogs)”, um conceito mais recente que surgiu aquando a publicação do decreto lei 74/2007.
Foi por isso que a Associação fez um pedido para que todos os cães de assistência sejam suportados de forma idêntica: “É injusto que os cães-guia e os de serviço façam a mesma coisa e uns tenham apoio do Estado e outros não. Isto é uma questão de justiça. Todos são cães de assistência.”
As raças mais comuns
Golden Retrievers, Labrador Retriever, Pastor Alemão, Jack Russel e Labradoodles são as raças mais comuns para treinar cães de serviço. A APCA é a única entidade certificadora em Portugal de cães de assistência na área dos medical dogs. Além desta, existem a Aguiar da Beira (cães-guia, para pessoas com deficiências visuais) e Animas (cães para surdos, para pessoas com surdez, e cães de serviço, para pessoas com deficiência mental, orgânica ou motora).
Aquisição, treino e certificação
Os valores de aquisição, treino e certificação de um medical dogpodem variar entre os sete e os 14 mil euros, o que faz com que muitas pessoas não tenham possibilidade de os adquirir.
Como sublinha o presidente da APCA, Rui Elvas, em Portugal existe “um acordo com a Segurança Social para os cães-guia, no qual o Estado comparticipa 55% da formação, mas não para os cães de serviço (medical dogs)”, um conceito mais recente que surgiu aquando a publicação do decreto lei 74/2007.
Foi por isso que a Associação fez um pedido para que todos os cães de assistência sejam suportados de forma idêntica: “É injusto que os cães-guia e os de serviço façam a mesma coisa e uns tenham apoio do Estado e outros não. Isto é uma questão de justiça. Todos são cães de assistência.”
Fonte: Expresso
A APCA é uma burla
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