terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

Vida independente: A emancipação das pessoas com deficiência

Em entrevista à Plural&Singular, Adolf Ratzka, o fundador do Independent Living Institute da Suécia e o pioneiro do Movimento de Vida Independente na Europa, falou sobre a implementação desta filosofia num mundo perfeito e a que é feita no mundo real, mas também teceu alguns comentários à realidade portuguesa que, no seu olhar, assumidamente, superficial considerou que pode ser propícia à implementação de mudanças a este nível.

Plural&Singular (P&S) - Como é feita a implementação da filosofia de vida independente num mundo perfeito?
Adolf Ratzka (AR) - Vida Independente é uma filosofia para que pessoas com deficiência tenham o mesmo grau de independência na família, comunidade e sociedade, e o mesmo grau de autonomia na vida quotidiana e em projetos de vida que os nossos irmãos, irmãs, amigos e vizinhos sem deficiência tomam como garantido. Este objetivo foi confirmado pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência de 2006. Num mundo ideal, a sociedade, incluindo políticos e administradores, deveriam reconhecer e honrar os nossos direitos como cidadãos, avaliar os gastos totais no setor da deficiência e redistribuir o dinheiro de uma forma que maximize a autonomia de pessoas com deficiência: em vez de gastar fundos em “armazenar-nos” em instituições residenciais - o dinheiro gasto atualmente para nos manter lá deveria ser alocado a nós para que pudéssemos viver com as nossas famílias - tal como as pessoas sem deficiência da nossa idade fazem comumente - ou escolher viver de outra forma qualquer na comunidade. 

Aqueles entre nós que precisam de assistência de outras pessoas para atividades da vida diária - tal como sair da cama, higiene pessoal, tarefas domésticas, acompanhamento para ir para a escola, para o trabalho, às compras, sair com os amigos, viajar - seriam pagos pelo Estado para empregar os próprios assistentes pessoais ou para contratar serviços de assistência pessoal às empresas que oferecem tais serviços. Num mundo ideal, o Estado teria reconhecido há muito tempo que a população envelhece, e que os acidentes nos degraus de escadas, nas casas de banho e cozinhas estreitas afetam um número crescente de pessoas a um custo crescente para os indivíduos e para a sociedade. Para tornar o ambiente construído num ambiente seguro para todos, os políticos deveriam ter aprovado, há muito tempo, a legislação que obriga à construção acessível de todos os novos edifícios privados e públicos, incluindo habitações, locais de trabalho e serviços abertos ao público, como lojas e restaurantes. A acessibilidade em novas construções dificilmente custa qualquer dinheiro adicional e a sociedade teria beneficiado com a redução dos gastos com cuidados de saúde, menos licenças por doença e menos reformas antecipada. 

No que diz respeito aos custos da assistência pessoal para garantir a igualdade de oportunidades às pessoas com deficiência, alguns podem ser financiados com os fundos que anteriormente eram gastos na manutenção de pessoas com deficiência em instituições residenciais. Os restantes custos da assistência pessoal seriam financiados pela poupança do apoio governamental aos desempregados, uma vez que muitas destas pessoas trabalhariam como assistentes pessoais. Num mundo perfeito, tanto os governos como os contribuintes teriam percebido, há muito tempo, que os gastos com a reabilitação, a tecnologia assistida e a assistência pessoal são realmente investimentos para o futuro, permitindo que as pessoas com deficiência (re) entrem no grupo da população ativa e percebam o seu potencial humano como membros contribuintes para a sociedade, em benefício de todos.

P&S - E num mundo real a implementação da filosofia de vida independente é mais demorada?
AR - No mundo real, é claro, o período de tempo dos políticos é limitado ao período atual do mandato. Uma visão de longo prazo não lhes dá mais votos nas próximas eleições. O conceito de ver as despesas em direitos humanos como investimentos num futuro sustentável, seguro e equitativo não é compartilhado pelo público em geral. A indústria da construção e os proprietários, tradicionalmente, são muito conservadores e têm uma grande influência sobre os políticos através de lobbies poderosos e bem financiados. O mesmo acontece, em relação aos administradores de instituições residenciais e instituições de solidariedade que beneficiam do status quo. No mundo real, em alguns países, as pessoas com deficiência, tradicionalmente consideradas como um fardo ou párias, são muitas vezes envergonhadas pela sua condição e muitas vezes não têm organizações representativas. 

As organizações para pessoas com deficiência existentes são divididas segundo o diagnóstico clínico e as pessoas são vistas como vítimas de condições médicas em vez de membros de uma minoria oprimida, confirmando assim a imagem do público em geral de que são indivíduos de quem se tem pena e são objeto de intervenção caridosa em vez de cidadãos com direitos iguais. Nestas circunstâncias, o Movimento de Vida Independente deve trabalhar em duas frentes: temos de convencer o público e os políticos que, sendo os melhores especialistas em relação às nossas necessidades, somos indispensáveis em todas as decisões, no planeamento e na conceção de políticas e programas em qualquer área, porque somos parte integrante da sociedade e, como tal, somos afetados por todas as decisões. A outra tarefa é mudar as nossas próprias atitudes em relação a nós mesmos. Temos de nos lembrar uns aos outros que não somos cidadãos de segunda classe, e denunciar a discriminação que estamos a enfrentar. Precisamos de nos apoiar mutuamente na restauração do nosso amor-próprio, lembrar-nos do nosso igual valor como seres humanos e do nosso estatuto de cidadãos com todas as obrigações e direitos que a cidadania implica. Precisamos de nos apoiar uns aos outros e entrar em todos os campos da sociedade em todos os níveis para fazer ouvir a nossa voz e ocupar o nosso lugar na construção da sociedade.

P&S - É complexo adaptar a filosofia a um contexto específico?
AR – Na minha opinião, existe resistência em toda parte, talvez em formas diferentes. Na Suécia, por exemplo, a resistência está associada à interpretação particular do Estado-Providência em que se assume que os profissionais do Estado sabem melhor o que as pessoas com deficiência precisam do que nós mesmos.

P&S - Conhece o contexto português?
AR - Não tanto quanto eu gostaria.

P&S - Comparado com outros que conhece, Portugal tem um contexto difícil?
AR - Numa comparação global o contexto de Portugal não é único. Há muitos países onde a religião, o forte papel da família no trabalho social, anos de ditadura e a pobreza consequente têm contribuído para reprimir o bem-estar material, político e psicológico do nosso grupo. O lado positivo disto: como Portugal, em muitos aspetos, ainda está numa fase de reconstrução, pode ser mais fácil implementar mudanças.

P&S - Como analisa as medidas que foram tomadas em Portugal nesta área?
AR - O presente projeto-piloto de assistência pessoal, apesar das suas graves limitações quanto ao número de pessoas envolvidas e ao tempo, continua a representar um passo na direção certa. (Refere-se ao projeto piloto promovido pelo Pelouro dos Direitos Sociais da Câmara Municipal de Lisboa)

P&S - Acha importante envolver os serviços existentes?
AR - Não sei o suficiente para poder comentar. Pessoalmente, prefiro trabalhar para a mudança fora do sistema atual. É mais fácil construir algo completamente novo do zero do que tentar adaptar e mudar estruturas grandes, complexas e politicamente poderosas que têm a confiança e o apoio do Estado e do público. No que diz respeito à assistência pessoal, penso que seria melhor, os municípios ou o Estado ficarem com a responsabilidade de embolsar, através do Sistema Nacional de Segurança Social, os pagamentos diretos de assistência pessoal para as pessoas com deficiência que mais precisam - em vez de pagar pouco a um grande número de pessoas que não têm uma necessidade real de assistência pessoal. É o caso de Espanha, onde a Ley de la Dependencia não melhorou a situação das pessoas com deficiências profundas, nem das pessoas que para a sua sobrevivência dependem de assistência nas atividades da vida diária.

P&S - Tem algum conselho para Portugal neste momento tão importante?
AR - No que diz respeito aos pagamentos diretos para a assistência pessoal: os pagamentos devem ser dados à pessoa e não ao prestador de serviços. Somente desta forma, as pessoas com a necessidade de assistência pessoal podem escolher, podem ter liberdade para contratar os prestadores de serviços que quiserem no mercado ou, se preferirem, podem empregar assistentes pessoais a título individual. Estarão numa posição de poder - como consumidores no mercado, em vez de objetos. Além disso, certifique-se que o indivíduo que precisa de assistência pessoal recebe o mesmo valor mensal para assistência pessoal, quer viva numa instituição residencial ou na comunidade. Obviamente, os prestadores de serviços portugueses encontrariam todos os tipos de argumentos contra tal disposição. Se as pessoas com deficiência receberem o mesmo dinheiro, elas vão poder escolher continuar a viver numa instituição ou sair. Muitos, especialmente os mais velhos, ficariam, mas os mais jovens iam aproveitar esta oportunidade.

P&S - Tem algum conselho para os políticos portugueses nesta fase?
AR - Sei pouco sobre o contexto português para dar conselhos. Poderá ser útil encomendar um estudo de alguns sistemas de assistência pessoal europeus atualmente em vigor - os melhores estão na Suécia, na Dinamarca, na Noruega, na Finlândia e nos Países Baixos. Desta forma, poderiam aprender com as experiências, boas ou más, das soluções existentes.

P&S – Já visitou Portugal?
AR - Estive várias vezes em Portugal em encontros com amigos com deficiência. Ouvi falar sobre algumas pessoas com deficiência que não têm ajuda das suas famílias com as atividades da vida diária e vivem sozinhas apenas com as necessidades mais básicas cobertas. O caso de um jovem com uma lesão medular que vive num apartamento no segundo andar, sem elevador. Só sai com a ajuda de dois amigos, mas a maior parte do tempo fica deitado na cama incapaz de fazer qualquer coisa. Uma vez por dia, alguém do município lhe traz comida e, aparentemente, essa é toda a assistência que ele tem. Foi-me dito que existem também outras pessoas em situações semelhantes. Isso é inaceitável e indigno de qualquer país!

Mais sobre Adolf Ratzka e a Vida Independente na Suécia

Adolf Ratzka é o responsável por importar a filosofia de Vida Independente dos Estados Unidos para a Suécia, onde conseguiu implementa-la, em 1993, e criar a legislação que estabelece o direito a um orçamento de assistência pessoal. A necessidade de assistência pessoal, no entanto, teve um crescimento mais rápido do que o esperado e, portanto, a lei foi alvo de várias alterações.

Na Suécia o Estado cobre em 100% os custos do serviço, independente dos rendimentos individuais ou do agregado familiar. Existe um mercado orientado para a procura de assistência pessoal, em que os prestadores deste serviço acabam por competir pelos clientes com base na qualidade do serviço.

O orçamento de assistência pessoal é atribuído, diretamente, ao usuário sob a forma de horas de assistência, mediante um cálculo baseado nas necessidades do indivíduo. O orçamento pode cobrir até 24 horas por dia, sete dias por semana, e pode até mesmo ser usado para ter mais do que um assistente pessoal, se necessário. Em 2013, cerca de 19.500 pessoas receberam um orçamento para assistência pessoal, sendo que o valor financiado foi de cerca de 28 euros por hora. Em 2014, existiam cerca de 230 entidades públicas e mais de 800 privadas que disponibilizavam serviços de assistência pessoal, numa base de mercado concorrencial. Há cerca de 80 mil pessoas a trabalhar como assistentes pessoais.

Uma legislação semelhante à da Suécia já foi adotada ou está em discussão em países como a Bélgica, a Finlândia, a Alemanha, a Noruega e o Reino Unido. Portugal também não quer perder o comboio e também já beneficiou da experiência de Adolf Ratzka que tem vindo a dar a conhecer este conceito por toda a Europa e pelo resto do mundo para que o maior número de pessoas saiba o que é a Vida Independente e possa equacionar viver segundo esta filosofia.

Foi depois de contrair poliomielite aos 17 anos de idade, que Adolf Ratzka ficou a depender de terceiros para praticamente tudo. Graças aos assistentes pessoais consegue trabalhar e consegue que a família não tenha que se converter em cuidadores informais forçados. “Vida Independente significa ter a mesma variedade de opções e o mesmo grau de autodeterminação que as pessoas sem deficiência tomam por garantido”, refere Adolf Ratzka.

O ativista disse, em entrevista à Rede Europeia de Vida Independente, que os serviços necessários à aplicação da Vida Independente proporcionam mais qualidade de vida a quem deles desfruta, promovem o crescimento individual e também, já se demonstrou, ficam mais baratos. E como tal, devem ser considerados, principalmente em tempo de crise, “belos e poderosos argumentos”. “Como político eu tentaria fazer o melhor uso do dinheiro público. E o que é que isso significa? Significa prestar serviços de qualidade a um bom preço, ou utilizar os recursos existentes da maneira mais hábil”, completa Adolf Ratzka.

Vida independente: A emancipação das pessoas com deficiência

Vamos falar de Vida Independente. E falar de Vida Independente é falar de liberdade de escolha e da possibilidade de se controlar a própria vida, escolher onde ir e com quem e de decidir o estilo de vida que se quer levar. Falar de Vida Independente é falar de direitos humanos e é falar de uma mudança de paradigma. É falar da vida que qualquer pessoa quer ter, incluindo, uma pessoa com deficiência.


A peregrinação portuguesa pela Vida Independente

As conquistas em relação a este “novo paradigma” devem-se em grande parte graças à ação do Movimento (d)Eficientes Indignados (MDI) que colocou a discussão do conceito na ordem do dia. “Ao basear a nossa intervenção numa perspetiva de defesa do modelo social e dos direitos humanos era inevitável a defesa da Vida Independente, objetivo que logo ficou inscrito no texto fundador do movimento”, refere Jorge Falcato.

O MDI acusa os sucessivos governos de Portugal de defenderem uma política institucionalizadora e Eduardo Jorge, outro ativista da causa, ficou “muito revoltado e admirado por verificar que não é uma questão de verbas” quando teve acesso a relatórios e acordos assinados entre a União das Misericórdias e o Estado. “Os valores chegam aos dois mil euros, por exemplo os CAOs (Centros de Atividades Ocupacionais) chegam a levar 460 euros ao Estado mais 60% às famílias”, explica o ativista.

Foi por isso que a 7 de outubro de 2013 Eduardo Jorge realizou uma greve de fome em frente à Assembleia da República. Não durou muito. Suspendeu-a porque foi de imediato recebido pelo Governo, na altura dirigido pela coligação PSD/CDS, que prometeu avançar com a elaboração de uma lei sobre o tema. O MDI também participou nesta reunião com o secretário de Estado Agostinho Branquinho, em que ficou definida a criação de um email para que as pessoas pudessem dar os seus contributos para a elaboração dessa legislação.

Ainda em dezembro de 2013 o MDI assinalou o Dia Internacional das Pessoas com Deficiência com uma conferência internacional em parceria com o Pelouro dos Direitos Sociais da Câmara Municipal de Lisboa (CML), sob o lema: "Vida Independente - a nossa vida nas nossas mãos”. Eduardo Jorge também participou neste evento que contou com a presença de Adolf Ratzka e onde se discutiram as bases desta legislação e se ponderou a ideia de lançar um projeto piloto de Vida Independente.

Entretanto, ao email chegaram “só” 65 contributos, mas o Ministério da Solidariedade, Emprego e Segurança Social (MSESS) apresentou “um esboço de uma formação para assistentes pessoais que já estava a acontecer no Norte”. “Achamos ridícula aquela formação porque não concordamos com absolutamente nada do conteúdo. Notou-se que estavam a avançar mas entregaram mais uma vez à União das Misericórdias”, acrescenta Eduardo Jorge.

Segundo o MDI esta iniciativa não dava resposta às reais necessidades de quem ia usufruir dela visto que retirava “a capacidade das pessoas com deficiência contratarem um assistente pessoal e serem elas a escolher”. Por sua vez, Ana Sesudo (Associação Portuguesa de Deficientes) diz que a Comissão para a Deficiência tomou conhecimento do “primeiro draft” do projeto piloto avançado pelo Governo para a formação de assistentes pessoais, mas disse que não teve qualquer contributo na escolha da União das Misericórdias Portuguesas (UMP) e do Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP) como parceiros para este projeto piloto.

“Na altura o parecer da APD foi de que seria uma formação, basicamente, para cuidadores e não teria propriamente a ver com o conceito que entendemos de assistente pessoal e daquilo que são os conceitos de Vida Independente”, refere. A presidente, entrevistada pela Plural&Singular, referiu que a APD, apesar de não ter nada contra esta formação, duvidava que fosse realmente um passo na ajuda na criação de legislação no âmbito da Vida Independente.

Para criar a figura de assistentes pessoais para pessoas com deficiência o MSESS previa investir 441 000 euros nestes programas piloto com a intenção de abranger um total de 300 formandos.

Alexandre Ribeiro frequentou a formação que o Governo criou e assume que serviu para aprofundar os conhecimentos adquiridos no âmbito da licenciatura em Educação Especial que tirou. Este curso dava direito ao subsídio de transporte e de alimentação e no final a um “estágio para aplicar os conhecimentos”. “Andámos a formação toda a falar em estágios e chegamos ao final diziam que não ia sequer haver estágios e em grupo forçamos um bocado e surgiu a ideia de nos darem uma formação em contexto de trabalho sem ser remunerada porque os fundos já não podiam cobrir um estágio”, lembra o formando.

Esta formação de 250 horas decorreu no Porto e Alexandre Ribeiro não tem conhecimento da existência de outras edições, mas diz que “em termos de plano estava bastante completo e até mesmo a escolha dos formadores para os módulos estavam mesmo vocacionados”.

“Eu diria que isto poderá ter surgido porque existiriam verbas disponíveis relativamente ao quadro comunitário de apoio que deveriam ser aplicadas neste sentido”, supôs na altura a presidente da APD.

Sobre os contornos da formação para assistentes pessoais o MDI diz que o anterior Governo não queria, no fundo, “dar o poder às pessoas com deficiência de gerirem as suas vidas” e que, por outro lado, este movimento informal considera que “existe um lóbi muito importante de quem tem instituições que fazem internamentos que deixariam de ter tanto peso se fosse promovida uma política de Vida Independente”.

Ainda foram realizadas mais algumas reuniões com o anterior Governo e o Instituto Nacional para a Reabilitação. “Constatámos que as promessas, realizadas aquando da greve iniciada por Eduardo Jorge, tinham sido feitas com o único objetivo de desmobilizar o ativismo pela Vida Independente, pois não havia qualquer vontade de cumprir os compromissos assumidos”, completa Jorge Falcato.

Depois da greve de fome em frente da Assembleia da República, que funcionou como um “basta” à institucionalização compulsiva por parte do Estado das pessoas com deficiência, em lares de idosos, como única alternativa de vida, Eduardo Jorge, no dia 23 de setembro de 2014, percorreu em cadeira de rodas a distância entre a Concavada, concelho de Abrantes, localidade onde residia na altura, e o Ministério da Solidariedade, Emprego e Segurança Social, em Lisboa. Foram 180 quilómetros. “Como a Lei prometida pelo Governo aquando da minha greve de fome, não aconteceu realizei uma viagem de protesto em cadeira de rodas com a finalidade de avivar a memória aos governantes sobre as promessas realizadas em 2013”.
“Quero ter direito a trabalhar, estudar, viver no meu bairro, círculo de amigos, perto da minha família, frequentar os lugares que escolhi, e não ser obrigado a ser um número, sem voz, num lar imundo e sem condições, a vários quilómetros de distância das minhas referências, com custos financeiros altíssimos para mim e para a minha família, só porque nasci ou adquiri uma deficiência. Criar-nos condições para vivermos nas nossas casas fica muito mais barato ao Estado do que a institucionalização”, refere Eduardo Jorge

Para além do apoio de muitos que aderiram e acompanharam o protesto – que serviu como uma chamada de atenção para esta realidade dirigida à sociedade civil – da parte da administração central foi colocado um comunicado no site do Governo no final do dia 23 de setembro em que o mesmo assume que está em curso a criação da figura dos assistentes pessoais para pessoas com deficiência através de projetos piloto de programas de formação.

Além do mais, o Governo acusa o MDI de não ter “apresentado qualquer proposta de conteúdo” e que as ideias apresentadas “não passaram, por isso de processos de intenções e princípios sem qualquer concretização de um projeto a operacionalizar”. E ainda, no comunicado, volta a frisar a participação da Comissão para a Deficiência na elaboração do Plano de Formação do Programa de Formação para APPDI dizendo que o mesmo “ficou concluído, integrando os contributos das entidades representadas na Comissão para a Deficiência”.

“Quando o Governo reagiu à ação do Eduardo diz que tem agido sempre em consonância com as organizações das pessoas com deficiência, isso não é verdade. E não é verdade porque quer a ACAPO, quer a APD concordam com as nossas posições naquilo que são os princípios básicos do Movimento pela Vida Independente”, sublinha José Falcato.

Numa coisa todos estavam de acordo: Tanto a Comissão para a Deficiência, na qual têm acento, além da APD, também a HUMANITAS – Federação Portuguesa para a Deficiência Mental e a Associação dos Cegos e Ambliopes de Portugal (ACAPO), como o MDI concordaram com o Governo que antes da elaboração de uma Lei, deviam existir projetos piloto experimentais de um serviço de assistência pessoal, “para que se pudessem tirar conclusões da melhor maneira de organizar a Vida Independente em Portugal”.

“Porque nós temos a informação de imensos projetos de Vida Independente a nível internacional, mas a experiência com um projeto piloto serve para testar as peculiaridades portuguesas porque não queremos aplicar soluções que não se adaptem em Portugal”, diz José Falcato.

“E até a própria pessoa com deficiência tem que, de alguma forma, estar capacitada e sensibilizada para aquilo que é este conceito de Vida Independente que é completamente diferente daquilo que temos hoje em dia em Portugal: pessoas que estão institucionalizadas ou pessoas que estão dependentes de terceiros, ou algumas que vivem em casa e têm apoio de terceiros mas o conceito de Vida Independente vai muito para além disso. E portanto nós pensamos que um projeto piloto nesta área tinha que, obrigatoriamente, envolver algum grupo de pessoas com deficiência”. Ana Sesudo

Depois desta ação de Eduardo Jorge, foi apresentado em dezembro de 2014 o Projeto Piloto VI na Câmara Municipal de Lisboa, que entrou em execução um ano depois. “Recordo aquela que foi a nossa [do MDI] mais recente ação sobre VI, a “ação dos prisioneiros”, por alturas da campanha para as legislativas, com a presença daqueles que viriam a ser secretária de estado e deputado, Ana Sofia Antunes e Jorge Falcato. Foi importante para o comprometimento político pela causa”, refere Rui Machado que também integra o MDI e o CVI.

Entretanto a discussão sobre Vida Independente já passou pelo Parlamento, graças a um projeto de resolução apresentado pelo Bloco de Esquerda que não foi aprovado devido aos votos contra do PSD e CDS-PP, partidos que compunham a anterior maioria. Mas entretanto, já com o PS no comando do país o Bloco de Esquerda, na pessoa de Jorge Falcato, apresentou, novamente, na Assembleia da República a proposta de implementação de projetos piloto de Vida Independente que foi aprovada e, desta forma, o Orçamento do Estado para 2016 já prevê o lançamento destes projetos.

“Esta aprovação foi mais uma etapa no caminho que nos há de levar a uma legislação que materialize o direito a uma vida independente para todos os que dependem de terceiros”, refere Jorge Falcato que não se coíbe de afirmar que a “luta” pela implementação desta filosofia “é um dos eixos fundamentais” da respetiva intervenção e “um dos objetivos que gostaria de alcançar como deputado”.

Entretanto a secretária de Estado da Inclusão das Pessoas com Deficiência, Ana Sofia Antunes, anunciou, em maio, que “até ao final do ano” vai abrir a fase de candidaturas para entidades que queiram concretizar, em todo o país, projetos na área da vida independente.

A implementação do sistema baseado na filosofia de Vida Independente é, em si mesmo, uma mudança de paradigma que tarda em se concretizar em Portugal. No entanto, os primeiros passos já se começam a dar com a execução de um projeto piloto, promovido pela Câmara Municipal de Lisboa e dinamizado pelo CVI, que conta já com um balanço intermédio.
“Vão existir muitas resistências por parte das organizações que vivem da institucionalização das pessoas com deficiência. Não podemos esquecer que a Vida Independente significa um corte com práticas instaladas que são também um negócio. Significa uma mudança de paradigma das políticas sociais, em que a pessoa com deficiência deixa de ser um sujeito passivo, de quem cuidam, para uma situação em que tem o controlo da sua vida, define os apoios que necessita e a forma como são prestados. O poder mudará de mãos e ninguém gosta de perder o poder”, sublinha Jorge Falcato.


O projeto piloto

Carina e Mariana Brandão são irmãs gémeas, têm 33 anos e, por causa de uma doença neuromuscular, têm necessidade do apoio de uma terceira pessoa. Durante toda a vida foi a mãe que fez a vez da assistente pessoal que agora, no âmbito do projeto piloto promovido pelo Pelouro dos Direitos Sociais da Câmara Municipal de Lisboa (CML), as apoia. “Tem sido ótimo. Deu mais liberdade à minha mãe e a mim também. Ao início foi algo estranho, mas depressa adaptou-se. Em vez de ser a minha mãe a prestar-me apoio é a minha assistente pessoal”, refere Carina Brandão.

As gémeas precisam de assistência para a higiene pessoal, para vestir, ao nível da alimentação, para entrar e sair de casa que não é acessível, ajuda no carro, na piscina e tudo o que se manifestar necessário. Mariana Seara tem 26 anos e foi responsável por ajudar as irmãs nestas tarefas até abril, altura em que foi contratada para um cargo de administrativa no Centro de Vida Independente. Carina e Mariana Brandão estão neste momento à procura de alguém que a substitua.

“Eu e a minha irmã definimos alguns critérios que são imprescindíveis. Eu e a minha irmã conduzimos, mas é essencial que tenha carta de condução e também não tenha problemas físicos e de saúde. Deve ser uma pessoa assertiva, responsável e queremos criar também alguma empatia com a pessoa”, explica Madalena Brandão.

Mariana Seara estava desempregada e diz que o que lhe despertou interesse neste anúncio foi “o facto de ser um trabalho que não requeria experiência nem formação específicas e sobretudo de ser um trabalho que, na sua essência, promove a igualdade e independência. Não sabia nada sobre esta filosofia e decidiu informar-se até para “perceber melhor em que consistiria”. “O trabalho como assistente pessoal é cansativo fisicamente mas muito gratificante, útil”, refere a jovem formada em Sistemas de Informação Geográfica. E o balanço que faz desta experiência é positivo. “Embora agora com a consciência de que a realidade portuguesa é ainda muito promotora da desigualdade e, por isso, da exclusão das pessoas com diversidade funcional”, acrescenta.
“Há muito por fazer, é necessário implementar diferentes projetos para que se possam testar diferentes modelos de Vida Independente, pois o funcionamento destes é algo complexo, que é necessário afinar. Mas é sobretudo urgente a sua criação, a uma escala nacional, pois constitui um grande passo para alcançar uma sociedade mais inclusiva e que promove a diversidade por oposição à discriminação”, refere a assistente pessoal Mariana Seara.

Também Diana Santos é uma das participantes deste projeto piloto e diz que, no dia a dia, recorre à assistente pessoal para a auxiliar nas idas à casa de banho no local de trabalho e onde se realiza a pós-graduação. Mas espera, quando tiver a própria casa cedida no âmbito do projeto, usufruir de mais horas de assistência.

“Nessa altura, a minha assistente pessoal, irá substituir as minhas mãos e os meus braços na higiene diária, na preparação das refeições, na lida da casa” refere. Para já é a mãe, o pai e a irmã quem prestam apoio a Diana Santos que, por causa da tetraplegia está dependente de terceiros. “A experiência tem sido maravilhosa. Esperava pela possibilidade de ter assistência pessoal há muito tempo e, por isso, está a ser muito fácil passar por este processo”, aponta. “Aliás, contra natura é, em Portugal, terem de ser os pais a abdicarem das suas vidas por décadas e décadas por um filho que fica infantilizado muitas vezes até à velhice por nunca ter exercido a sua vontade própria”, acusa

Sendo a escolha do assistente pessoal da inteira responsabilidade do participante, Diana Santos procurou “uma mulher que não tivesse filhos pequenos, tivesse carta de condução e flexibilidade horária”. “Comecei a assistência em janeiro e foram necessárias apenas três entrevistas para encontrar a pessoa adequada ao perfil que procurava”, revela. Esse perfil incluía uma pessoa “com iniciativa, um grande sentido prático e que fosse muito discreta”. Mas, ao mesmo tempo, possuísse “uma personalidade muito agradável para estar, quer em privado quer socialmente,” e que respeitasse as vontades de Diana Santos e as executasse “de forma exímia”. A família está radiante e até aliviada por saber que a filha e irmã estão bem entregue aos cuidados de alguém que não seja “um companheiro” ou “um lar de idosos”. “A relação afetiva que nutrimos uns pelos outros é a mesma, contudo, já não estamos “simbióticos” e dependentes das vontades e necessidades de nenhum dos membros da família”, realça. Diana Santos diz que graças à assistente pessoal “deixou de ser necessário conjugar horários, sacrifícios individuais e anulação de vontades próprias”. “Quer das minhas quer de quem tinha de me auxiliar”, sublinha.
“O facto de fazer o que quero e preciso quando quero, dá-me uma liberdade para fazer ainda mais do que já fazia. Contudo, os maiores ganhos estão a ser dentro de mim, na minha auto estima e confiança. Hoje, não dependo da caridade nem do amor de ninguém para me auxiliar nas tarefas necessárias. Tenho alguém, com um contrato de trabalho formal, que executa tarefas definidas por mim suplantando aquilo que o meu corpo não consegue fazer e isso coloca-me em igualdade ás restantes pessoas no acesso ao emprego, nas relações familiares, amorosas e sociais”, diz Diana Santos.

Marisa Lopes achou “que tinha o perfil certo para ser assistente pessoal” e decidiu arriscar a candidatura ao anúncio do CVI. “Só em março de 2016, e após uma segunda entrevista é que fui selecionada”, lembra. É técnica superior de Reabilitação Psicomotora, mas não sabia nada sobre a filosofia de vida independente. Mas considera que para executar estas tarefas “é preciso ter vocação e gostar muito daquilo que se faz”. “Não há meio termo”, diz. É responsável por acompanhar a pessoa que assiste “quase diariamente, numa média de duas horas, à faculdade, ao trabalho, às compras”. “Está a ser uma experiência bastante enriquecedora a todos os níveis”, avalia a assistente pessoal. “Para muitos, esta questão da vida independente é utópica e inviável. Mas a verdade é que já está a acontecer em Portugal e, cada vez mais, é menos uma filosofia e mais uma realidade”, conta.

Neste momento existem cinco participantes que têm apoio por parte de cinco assistentes, e curiosamente, tanto as assistidas como assistentes são todas mulheres. “Prevemos que o número de assistentes cresça com a mudança de quatro das cinco participantes para as respetivas novas casas, o que fará aumentar também o número de horas necessárias”, explica Diogo Martins do Centro de Vida Independente, a entidade criada para gerir o projeto piloto.

Já foram gastas cerca de 1.000 horas de assistência, sendo que a média mensal de horas atribuídas é de 670 horas para as cinco participantes e no balanço intermédio deste projeto, que entrou em execução em dezembro de 2015, verifica-se ainda que “uma das componentes do projeto, que tem a ver com a disponibilização de habitação a quatro dessas pessoas, está atrasada”. “Penso que o projeto ganhará outra dinâmica quando as obras de adaptação dessas habitações estejam concluídas. Será a partir desse momento que todas as potencialidades do sistema serão uma evidência e que se registará um acréscimo significativo na autonomia e qualidade de vida destas pessoas”, refere Jorge Falcato que, nas funções de técnico do Pelouro dos Direitos Sociais da CML, foi responsável pela conceção e coordenação do projeto piloto e neste momento, enquanto deputado, é sócio e apoiante do CVI.

O deputado ressalva que a estrutura do CVI é composta por pessoas com deficiência e que essa “característica inovadora” poderá ser “um prenúncio de novas políticas sociais que materializam efetivamente o velho slogan da comunidade das pessoas com deficiência: Nada sobre nós sem nós”.

Para Diogo Martins, com este projeto piloto é possível verificar que “a assistência pessoal é funcional, as pessoas têm realmente alterações positivas nas suas vidas, sobretudo em relação à família”. “Apesar de ser, por vezes, complicado de explicar estes ganhos, porque não os medimos em números ou resultados financeiros, é notório que a capacidade das pessoas de decidir as suas vidas realmente aumentou em relação à que tinham antes”, refere.

Isto porque no fundo, a filosofia de Vida Independente gera dois impactos: o social, contribuindo para uma sociedade “mais rica pela diversidade humana que ganha” e o económico por “serem gerados empregos, diretos com a assistência pessoal, mas também porque as pessoas com diversidade funcional passam a ter possibilidade de estudar, formarem-se e trabalharem”.
“O impacto da assistência pessoal não se pode medir meramente em custos financeiros para o país, existe todo um impacto não visível de forma direta. O facto de com a assistência pessoal as pessoas com diversidade funcional poderem sair à rua, socializar, ter atividades de lazer, estudar e trabalhar, faz com que sejamos mais vistos, e com isso haja uma maior consciencialização de que temos necessidades. Tudo isto funciona como uma bola de neve que vai crescendo”, Diogo Martins do Centro de Vida Independente.

O grande objetivo deste projeto piloto é, segundo refere Diogo Martins, provar que é possível a Vida Independente em Portugal, e “fazer com que esta prova também se reflita na realidade nacional”. “A demonstração da viabilidade está feita a nível internacional”, acrescenta Jorge Falcato. Tanto ao nível do “aumento exponencial da qualidade de vida de quem é utilizador de sistemas de assistência pessoal”, como também está demonstrado, “por diversos estudos, que o retorno do investimento público é claramente favorável quando comparado com a institucionalização”.

O futuro passará pela implementação de projetos piloto à escala nacional, cuja avaliação permitirá tirar conclusões sobre vários modelos práticos de assistência pessoal, para, então, criar a tão “almejada” legislação necessária para tornar acessível a assistência pessoal a todas as pessoas.

Contactado pela Plural&Singular para perceber melhor os contornos destes projetos piloto, o Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social remete para momento posterior mais esclarecimentos sobre esta temática.

“Está previsto um período de discussão pública sobre as candidaturas à gestão dos projetos piloto e sobre o formato que irão ter”, revela Jorge Falcato. O deputado apela, por isso, à “mobilização da comunidade das pessoas com deficiência e das suas famílias nessa discussão”. “Este primeiro passo que são os projetos-piloto, para termos no futuro uma legislação adequada e eficaz, só será um passo seguro se as pessoas com deficiência se fizerem ouvir”, frisa.

A peregrinação portuguesa pela Vida Independente e o projeto piloto promovido pelo Pelouro dos Direitos Sociais da Câmara Municipal de Lisboa (CML) integram o tema de capa da 16.ª revista digital que pode ser lida na integra aqui.

Fonte: Plural&Singular

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