Eu iniciei funções no Ministério da Educação, como coordenadora da recém-criada Divisão de Ensino Especial, em Junho de 1973. Tinha estado anteriormente no Ministério da Saúde e Assistência, que era o único departamento oficial que se ocupava da educação de alunos com deficiência e aí tinha tentado criar condições para a integração de crianças e jovens cegos em escolas regulares. Ao assumir as novas responsabilidades, deparei com uma tarefa de uma dimensão muito mais ampla, pois os objectivos propostos para aquela divisão estendiam-se a todo o tipo de alunos que enfrentassem barreiras de ordem física ou mental.
A minha primeira tarefa consistiu em elaborar um relatório da acção que, considerei, deveria ser realizada de modo a permitir que as crianças com deficiência visual, auditiva ou motora (muitas vezes com causas neurológicas) pudessem permanecer no seu ambiente familiar e frequentar as escolas da sua área de residência, não sendo obrigadas a ser internadas em instituições, tanto mais que a maioria das existentes eram de carácter fundamentalmente asilar.
Para que esse plano fosse viável, foi apresentada a necessidade de, previamente, se especializarem os professores que iriam realizar o indispensável apoio aos alunos a integrar e foi apresentada uma estratégia relativa à sua intervenção que garantisse a sua deslocação de escola para escola, numa acção itinerante, e que favorecesse a sua interacção e entreajuda. Essa estratégia consistiu na criação de “Equipas de Educação Especial”, baseadas em determinadas localidades e abrangendo uma área de cerca de 60 km de raio.
Propôs-se que, numa primeira fase, se formassem 60 professores que seriam distribuídos por seis equipas e pelos três tipos de deficiência referidos. Este plano implicava que se iniciasse um projecto, até aí inexistente em Portugal, e que se utilizassem verbas consideráveis para a execução das várias rubricas implicadas - formação dos professores (cursos de 15 meses, a tempo pleno) e sua deslocação, aquisição de material especial e acções de acompanhamento e formação contínua. Para além disso, era necessário que tivesse lugar uma intervenção nas escolas e nas salas de aula, realizada por profissionais externos e que o apoio fosse, quando necessário, extensível às famílias, a título domiciliário.
Há ainda a acentuar que não existia nenhum documento que constituísse um suporte legal a este conjunto de acções e não havia qualquer experiência no campo da integração de crianças surdas ou com problemas motores e neurológicos.
Lembro-me que, na altura, admiti que seria muito provável que esta proposta não fosse aceite ou que fossem exigidos, para uma tomada de decisão, numerosos pareceres prévios elaborados por diferentes grupos de trabalho. Foi assim, com espanto, que recebi o despacho assinado pelo Ministro Veiga Simão a autorizar tudo o que tinha sido proposto e que, nos tempos que se seguiram, fossem abertas as portas à enorme expansão daquelas equipas e à difusão da educação integrada no nosso país. Avançar naquele caminho representava, de facto, uma aposta e um risco que Veiga Simão aceitou tomar.
A adesão do sistema educativo a esta orientação viria certamente um dia a ser preconizada entre nós, quando fosse adoptada por muitos países e recomendada - como hoje é - pelos principais organismos internacionais. Mas sem a decisiva tomada de posição de Veiga Simão, Portugal não teria a posição pioneira que ocupou neste campo e muitas das crianças com deficiência que tiveram acesso às escolas perto das suas casas e tiveram a possibilidade de crescer nas suas comunidades teriam sido privadas desse direito que hoje é unanimemente reconhecido, como um dos fundamentais direitos humanos.
Escrevo este testemunho num momento em que as expectativas então criadas e as acções então iniciadas estão muito gravemente comprometidas e em que tantas crianças e jovens enfrentam inumeráveis obstáculos à sua inclusão educativa, o que é vivido dolorosamente por tantos pais, técnicos e professores.
Fonte: Público Por: ANA MARIA BÉNARD DA COSTA
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