Foi ainda em 2014 que a autarquia avançou com este projecto, que se pretendia que envolvesse, por um período de dois anos, cinco a dez pessoas “com deficiência, com limitações físicas que impeçam a realização autónoma de tarefas da vida diária”. A ideia era que a essas pessoas fosse dada a oportunidade de contratarem, com verbas disponibilizadas pela câmara, assistentes que lhes dessem o apoio de que necessitavam em casa.
A iniciativa, pela qual deu a cara o vereador dos Direitos Sociais, João Afonso, foi desde então ganhando forma: a proposta inicial da câmara foi submetida a um período de auscultação pública da comunidade de pessoas com deficiência e foi constituído o Centro de Vida Independente (CVI), a associação que vai gerir o projecto-piloto. Já neste mês de Novembro, o município e o CVI assinaram um protocolo de colaboração, que prevê a transferência para o segundo de 152 mil euros e a disponibilização de “até três fogos municipais”, destinados a beneficiários do projecto que tenham necessidade de uma habitação.
Em paralelo, a associação, que se apresenta como tendo “por objectivo base a defesa e a divulgação da filosofia de Vida Independente em Portugal”, abriu um processo de candidatura para os “utilizadores” e outro para os “assistentes pessoais”. Os primeiros tinham que ter entre 18 e 64 anos, residir ou trabalhar no concelho de Lisboa e ser pessoas “com deficiência, dependentes de terceiros nas actividades da vida diária”.
Segundo disse ao PÚBLICO o presidente da direcção do CVI, houve entre “15 a 20” candidaturas aos lugares de utilizadores, apresentadas por pessoas com situações “diversificadas”. Para fazer a selecção daquelas que iriam entrar neste projecto-piloto foi, como explica Diogo Martins, formado “um grupo de trabalho”, cuja missão “obviamente não foi fácil”.
“Tentámos medir em termos de ganhos pessoais e de objectivos atingíveis e conseguimos conjugar com outros ganhos, como familiares ou habitacionais. Não é uma coisa muito mensurável em termos financeiros ou coisa do género. Às vezes, só a pessoa poder levantar-se e sair de casa já é um grande ganho”, diz o presidente da associação, para explicar como foi feita a selecção dos cinco felizes contemplados.
Uma selecção que foi dada como certa numa reunião do CVI à qual o PÚBLICO assistiu a 13 de Novembro, data em que foram aliás enviados mails a todos os candidatos dizendo se tinham ou não sido escolhidos. Para que este processo seja dado como concluído falta apenas uma formalidade: a ratificação pela Assembleia do CVI.
"Se a minha mãe me falta sou institucionalizada"
Duas das escolhidas foram Carina e Madalena Brandão, que sofrem de polineuropatia muscular, uma deficiência congénita que as atirou para cadeiras de rodas quando tinham 14 anos. Desde essa altura vivem num pequeno apartamento, no rés-do-chão de um edifício na Avenida da República, em Lisboa. Uma casa em que residem por a sua mãe ser a porteira do prédio e na qual não podem por isso fazer as obras que seriam necessárias para a adaptar à sua condição física.
Nos últimos anos, as gémeas de 32 anos licenciaram-se em Psicologia Social e das Organizações e tiveram diferentes experiências profissionais. Agora estão a frequentar um mestrado em Psicologia Clínica e da Saúde e a realizar estágios profissionais, actividades que acumulam com várias outras, como a natação, a ginástica e a dança e a participação no CVI.
“Isto só é possível porque temos o apoio de uma terceira pessoa”, reconhece Carina referindo-se à mãe, Cristina, de quem ela e a sua irmã dependem para actividades aparentemente tão simples como entrar e sair dos carros que conduzem nas suas deslocações diárias, cozinhar e tomar banho, entre muitas outras coisas. A licenciada em psicologia reconhece que essa dependência é motivo de preocupação: “quando tinha 24, 25 anos comecei a pensar mais no futuro e a pensar que se a minha mãe me falta eu sou institucionalizada”, confessa.
Um receio que é partilhado por Madalena, para quem não é solução de futuro transferir para um namorado ou para um marido os encargos agora atribuídos à sua mãe. “Eles não têm que ser nossos enfermeiros, nossos cuidadores”, diz, defendendo que é exactamente para assumir esse papel que faz sentido que exista a figura do assistente pessoal.
Nas candidaturas que apresentaram, Carina e Madalena identificaram a necessidade de ter um assistente durante a manhã e ao fim do dia. A ideia, explicam, é terem alguém que as ajude a fazerem a sua higiene e a vestirem-se, que prepare as suas refeições, que limpe a casa e trate da roupa.
Além disso, as gémeas manifestaram interesse em poder mudar-se para um fogo municipal que, ao contrário do que acontece na casa em que hoje moram, esteja adaptado às suas necessidades. “Já estava a pensar há dois anos em sair de casa mas não reunia as condições para alugar uma casa e para pagar a um assistente”, diz Carina, sublinhando que a participação no projecto-piloto vai permitir dar resposta a essas duas necessidades.
“Quando sair de casa vou começar uma nova etapa de vida em que vou poder ser eu e não eu mais a minha mãe”, congratula-se, admitindo que com essa mudança passará também a ter uma série de novas “responsabilidades”. “Vai ser um grande desafio para mim perceber até onde vão os meus limites”, conclui Carina.
Também Madalena deposita grandes esperanças nesta iniciativa, não só por si e pela irmã, que vão “crescer como pessoas”, mas também pela sua mãe, que “vai ter mais liberdade”. “A minha mãe está sempre preocupada se vai estar em casa quando voltamos. Deixa de fazer muitas coisas para nos apoiar”, lembra. “Ela vive em função de nós. Está na altura de retomar a sua vida e a sua independência”, anui Carina.
Assistentes pessoais procuram-se
Além das gémeas, vão beneficiar deste projecto-piloto da Câmara de Lisboa outras três pessoas, duas das quais solicitaram também que lhes fossem atribuídos fogos municipais. Segundo o presidente da direcção do CVI, as cinco pessoas seleccionadas identificaram, no total, a necessidade de ter o apoio de assistentes pessoais 659 horas por mês.
Em relação aos assistentes, Diogo Martins adianta que chegaram à associação cerca de 100 manifestações de interesse. Para concorrer à posição não se exigiam grandes requisitos: no anúncio da abertura das candidaturas divulgado pelo CVI no seu site explicava-se que não era obrigatória “formação ou experiência”, que o horário de trabalho tanto podia ser “part-time ou full time” e que seriam firmados contratos de trabalho doméstico a tempo certo, sendo feito um “pagamento mensal do número de horas prestadas”.
Mas para que não houvesse dúvidas sobre o que é isto de ser assistente pessoal, no interior do anúncio havia um link para uma outra área do site, na qual se desenvolvia o assunto. “Um assistente pessoal pode realizar qualquer tarefa, dependendo da situação em que se encontra a pessoa a quem presta o serviço de apoio. As tarefas decorrerão, fundamentalmente, das incapacidades da pessoa para quem trabalha, e serão sempre previamente acordadas por ambas as partes”, explicava-se, discriminando-se que as tarefas em causa poderiam ser “pessoais”, do “lar”, de “acompanhamento”, “condução”, “interpretação”, de “coordenação” ou “excepcionais”.
Apesar de toda essa informação, Diogo Martins reconhece que entre as cerca de 100 pessoas que se candidataram aos lugares disponíveis pode haver quem o tenha feito ao engano. “Provavelmente muitas destas pessoas estão a pensar que era outra coisa”, admite, sublinhando que “o conceito” de assistente pessoal “para Portugal é novo”.
Por isso, o CVI irá fazer “uma filtragem inicial” das candidaturas recebidas. Depois disso, será “obviamente” cada um dos cinco utilizadores já seleccionados a escolher o seu assistente pessoal, constata Diogo Martins. “Um assistente é como uma extensão do nosso corpo, das partes que não funcionam”, sublinha por sua vez Carina Brandão, justificando assim o procedimento que vai ser adoptado.
“Um assistente não é um enfermeiro ou um fisioterapeuta. É alguém que ajuda no que é preciso”, acrescenta Madalena Brandão, destacando que para si os únicos “critérios” para se poder ser assistente pessoal são “ter vontade, espírito de ajuda e ser flexível”.
No final de Novembro, o CVI vai promover uma acção de formação para todos os que vão participar neste projecto-piloto. A ideia é que aí recebam um conjunto de informações mais teóricas, sobre o que é isto da Vida Independente e sobre a sua história, que percebam o que é e como funciona a associação, mas também que adquiram alguns conhecimentos práticos, tanto ao nível da gestão de conflitos e das relações pessoais como das chamadas transferências (as passagens dos deficientes por exemplo da cadeira de rodas para a cama).
"O mundo tem que funcionar assim"
“O objectivo deste projecto-piloto é mostrar que é possível pôr em prática a Vida Independente, é demonstrar que funciona e promovê-la entre as pessoas que ainda não a conhecem”, resume Diogo Martins. A sua ambição é, claro, que depois de Lisboa haja outras câmaras a lançar iniciativas como esta e que o Governo “assuma a responsabilidade” que tem nesta matéria, proporcionando aos cidadãos com deficiência a possibilidade de continuarem nas suas casas com a ajuda de assistentes, em vez de dependerem de familiares ou de terem que ir viver para uma instituição.
“Acredito na Vida Independente. O mundo tem que funcionar assim. As pessoas não têm que ser institucionalizadas”, corrobora Carina Brandão, enquanto a sua irmã Madalena se mostra convicta de que, apesar de não estar isento de dificuldades, este processo “vai funcionar”.
Já a Câmara de Lisboa sublinha, em respostas escritas enviadas ao PÚBLICO pelo gabinete do vereador dos Direitos Sociais, que este “é um projecto fundamental” e “inovador no país”, que a autarquia tem “orgulho” em ter lançado. Para os cidadãos com deficiência que dela beneficiarem, sublinha-se, esta iniciativa possibilitará uma alteração radical do quotidiano, permitindo-lhes assumir efectivamente o controlo das suas vidas, em pleno respeito pela dignidade e capacidade de decisão individual”.
“A câmara acredita que este projecto terá resultados muito positivos, demonstrando para lá de qualquer dúvida que os sistemas de Vida Independente, que já existem em vários outros países, também são possíveis e necessários em Portugal”, acrescenta-se nas respostas, nas quais se manifesta a expectativa de que “o Estado tome em consideração este projecto piloto e que, por sua iniciativa, crie os instrumentos necessários para o alargamento da Vida Independente a todo o território nacional”.
Segundo as informações do gabinete do vereador João Afonso, “a prestação de assistência pessoal começará” no dia 3 de Dezembro, data em que se assinala o Dia Internacional das Pessoas com Deficiência. A partir daí, esclarece-se, “os participantes beneficiarão dessa assistência no seu contexto actual”, ocorrendo a mudança para os fogos municipais disponibilizados para o efeito “assim que estiverem prontos”.
Fonte: Público
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